quinta-feira, 10 de julho de 2008

TADEU ROCHA-INFORMAÇÕES


TADEU ROCHA-INFORMAÇÕES
(Clerisvaldo B. Chagas-10.7.2008)

Na Rua do Comércio em Santana do Ipanema, bem perto do Beco São Sebastião, ainda existe um imponente sobrado dos tempos de vila. Dali participavam e influíam intensamente na vida social da época, o Coronel Manoel Rodrigues da Rocha e sua esposa Maria Isabel Gonçalves Rocha, conhecida mais por Dona Sinhá Rodrigues. Manoel Rodrigues foi um dos homens de maior prestígio em Santana do Ipanema no período 1900-20. (Ver após lançamento “O boi a bota e a batina, história completa de Santana do Ipanema” da nossa autoria). Comerciante, industrial, tinha como mulher uma senhora culta que havia estudado e lecionado na melhor escola de Sergipe. “Mané Rodrigues” tornou-se amigo e parceiro de Delmiro da Cruz Gouveia, um dos maiores empresários da América Latina no início do século XX.
A primeira estrada de rodagem do Sertão nordestino foi construída por Delmiro, passando por Santana, indo até Quebrangulo em Alagoas e Garanhuns em Pernambuco. Foi o pioneiro da luz e da água de Paulo Afonso; o primeiro a construir um centro de compra na América Latina, por nome de Derby, no Recife, onde havia até corridas de cavalos. Introduziu a palma forrageira nos sertões, trazida da Califórnia; programou a primeira sociedade fabril nos moldes modernos produzindo linha marca “Estrela”, em pleno deserto de Alagoas. Foi o primeiro homem a possuir automóvel no estado e enricou duas vezes vendendo e exportando couros de bode e ovelhas para o exterior. Um homem para o século XXI, só comparado ao Visconde de Mauá. Delmiro foi assassinado em 1917. O Coronel Manoel Rodrigues da Rocha faleceu em 1920.
Foi daquele famigerado casarão que saíram dois dos primeiros escritores santanenses. Tadeu Rocha, o primeiro, era um dos filhos do Coronel Manoel Rodrigues. Foi embora para o Recife onde se tornou professor universitário, pesquisador e escritor emérito. O outro foi Breno Accióly (já bastante divulgado), que saiu de Santana ainda garoto com a família em destino a Maceió, sendo filho de uma das filhas do Coronel e do primeiro juiz de Santana.
São escassas ou inexistentes as pesquisas sobre Tadeu Rocha. O professor Tadeu foi um dos primeiros escritores da terra, tendo publicado “Geografia Moderna de Pernambuco”, São Paulo, l954; “Caderno de Geografia do Brasil”, 1956, 2 edição, Recife, e “Roteiros do Recife triênio 1956/1959”, entre outros. Tadeu foi exímio e sério pesquisador quando se esmerava nos detalhes pesquisados, sempre atento aos arredores e elegante no escrever.
Foi este filho do Coronel Manoel Rodrigues que escreveu sobre o extraordinário empresário brasileiro Delmiro da Cruz Gouveia. Apresentou o gênio empresarial ao Brasil e ao mundo no mais perfeito livro sobre o tema: “Delmiro Gouveia, o Pioneiro de Paulo Afonso”. Uma 2 edição aparece em 1963, em Maceió. Tadeu foi testemunha viva dos encontros de Delmiro na casa do seu pai. Pesquisou depois em vários estados nordestinos para finalmente entregar a magistral obra ao público brasileiro. Nada mais tivesse escrito, ainda assim Tadeu teria se consagrado plenamente com o livro em questão. Valho-me do ilustre e imortal escritor para abrir o meu futuro livro já descrito acima.
Não conheci Tadeu que, como o Breno, seu sobrinho, veio da elite santanense.  Já no final da sua vida Tadeu estava cego no Recife e não pode atender a um nosso apelo para fundarmos uma congregação em Santana. Tadeu formou com o sobrinho Breno e mais Oscar Silva, o trio de escritores mais antigos e caros de Santana do Ipanema. Dois da elite e um do povo, sentado o terceto na primeira fila dos que honraram a terra com suas letras. Nenhum fez sombra ao outro. Cada qual seguiu no estilo ímpar, próprio de cada um. Todos os três contemporâneos. Breno, homem dos contos; Tadeu, rapaz da pesquisa geográfica; Oscar, personagem das crônicas e romances.
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segunda-feira, 7 de julho de 2008

BALAS NA AGULHA


BALAS NA AGULHA
(Clerisvaldo B. Chagas-7.7.2008)

Corria o ano de 1970. Seca braba no sertão nordestino, gado morrendo, fome campeando, bandeira da miséria hasteada.
Em Santana do Ipanema, estava como representante municipal, o Prefeito Henaldo Bulhões Barros que a todo custo procurava amenizar os efeitos terrificantes do ciclo de estiagem. Várias estradas já haviam sido construídas na região, havia água da adutora de Belo Monte, proporcionando assim um maior deslocamento do povo e um complemento d’água melhor de que em secas do passado. Mas a seca regional era devoradora e atacava principalmente o homem do campo, destruindo lavouras e animais, minguando o estoque regulador de comida caseira. Quanto mais alto sertão, pior era o tempo.
Na faixa entre o povoado Candunda e a Ribeira do Capiá, houve vários movimentos contra a seca. Uma família, tremendamente apertada diante da fome, cujo pai de família chamava-se Antonio Rodrigues, vulgo “Tonhe Véi” (Tonho Véio, Antonio Velho), costurou uma idéia. Antonio era um homem bem conhecido, trabalhador alugado e respeitadamente honesto. Vendo os filhos em tempo de serem engolidos pela fome, trouxe o jumento do cercado, passou-lhe a cilha e empurrou dois caçuás possantes na cangalha acostumada. Colocou o chapéu de palha na cabeça, encheu uma pistola de balas, chamou a esposa Maria e partiram de casa.
Ora, ali nas imediações, havia um sujeito (não queremos citar nomes) que mantinha um armazém sortido para vender ou explorar os filhos da seca que quase morriam à míngua pelos arredores. Nada de fiado. Qualquer alteração estava ali o gerente e seus capangas garantindo o êxito crescente dos negócios.
Ao chegar perto do armazém, Antonio Rodrigues foi logo dizendo para a mulher, referindo-se a pouco ou muito barulho: “— Fique escutando, Maria, se cair chuva fina, você fique; se ouvi trovoada você corra”. E a esposa do sertanejo ficou do lado de fora tomando conta do jegue e atenta aos acontecimentos. Antonio entrou deu bom dia e mandou botar uma cachaça. O gerente alegrou-se pensando que iria fazer um negócio grande.
— Êpa, Tonhe Véi, o que é que manda, meu amigo?
E o sertanejo simplesmente disse, emborcando a pinga, que viera fazer compras. E assim começou a pedir a mercadoria: tantos quilos de charque, tantos quilos de feijão, de arroz, de farinha, pacotes de bolachas, sal, açúcar, café e assim em diante, até completar uma carga completa que enchia os dois caçuás. Encerrando as compras, tomou mais outra bicada, ficou em ponto estratégico e, diante da euforia do gerente, mandou que ele somasse tudo e botasse na conta. Qual não foi a reação do homem! Fiado? Nem falasse nisso. Ali não sairia um só centavo fiado, ordem do patrão. Antonio Rodrigues sacou a pistola, rodou-a em forma de leque e disse:
— Quero todo mercadoria dentro dos meus caçuás, agora! Nunca errei um tiro. São nove balas, nove defuntos, quer ver, não me obedeça.
— Mas Tonhe Véi, não pode... Você sabe...
— Bote outra cachaça.
— Mas Tonhe Véi, você já bebeu demais...
— Vai botar essa peste, não! — e a tábua de passagem do balcão foi jogada com grande vigor, fazendo um barulho enorme.
— Não, Tonhe, tá certo, vou botar mais cachaça.
Para resumir, os capangas ainda foram obrigados a levar a mercadoria para os caçuás e o sertanejo partiu com a mulher estrada afora sem ser molestado em um dedo sequer.
Ora, tempos depois Antonio Rodrigues voltou ao armazém, pagou a conta completa, recebeu inúmeros elogios do gerente e passou a ser o melhor freguês do armazém. Provou que era um homem honesto desesperado diante das circunstâncias. Escapou da seca, da fome, da perseguição e fez brilhar sua dignidade de homem decente.
Trinta anos depois desse acontecimento, tive o prazer e a felicidade de conhecer Tonhe Véi, e tê-lo como empregado de extrema confiança. Um homem simples, analfabeto e sábio nas lições da vida.
Antes Tonhe Véi usou uma pistola para ser honesto. Hoje, o colarinho branco empunha uma caneta para ser bandido.
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SEBO NAS CANELAS


SEBO NAS CANELAS
(Clerisvaldo B. Chagas-7.7.2008)

Quando a meninada de Santana resolvia brincar, as ruas enchiam-se de garotos de todos os lugares. Entre os brinquedos que reinavam nas ruas sem calçamento, estavam a ximbra, o pinhão e a bola. Houve época em que as brincadeiras eram soltas sem interferência das autoridades. Depois, surgiram pelo menos dois prefeitos que não toleravam nenhum tipo de manifestação lúdica, apelando para a marcação implacável de fiscais. Duas dessas pessoas que se tornaram o terror das crianças e odiadas por elas, estavam o Aloísio Firmo e o soldado Genésio.
Aloísio Firmo, homem sério, honesto, duro, cumpridor de seus deveres como funcionário público, também era mal-humorado. Diziam que obtivera o título de juiz de menor. Isso dava direito ao Aloísio, de percorrer as ruas montado numa burra, espantando menino, tomando-lhe as ximbras. O Genésio, soldado moreno, cara feia, talvez não fosse pessoa má, contudo andava a pé acompanhando os passos do animal.
Aloísio era pai do garoto Petrúcio C. Melo, que logo cedo teve o ideal de ser locutor. Discriminado, vaiado, perseguido, Petrúcio procurou o seu destino fora de Santana e acertou em cheio. Atualmente apresenta programas de televisão em vários lugares do País, sempre com o seu prestígio em alta. É mais um caso de profeta da terra.
Mas voltando às atuações de Aloísio e Genésio, os garotos possuíam um medo triste daquela famosa dupla da era 50. Grupos de brincalhões faziam como os macacos em roças de milho, enquanto o grosso jogava, um espia arregalava os olhos na esquina. A qualquer momento poderiam aparecer os dois personagens com a burrinha estirando o pescoço, subindo a ladeira. Nesse caso, era um espanar de meninos pelas Ruas Antonio Tavares, São Pedro, José Quirino, Nova e outras mais, numa velocidade que nem bala chegava perto.
Santana começando uma vida nova, Santana querendo mudar, Santana querendo progresso. Mas os passos que se davam na política não eram tão rápidos como as carreiras dos meninos. É também de se notar que havia mais tranqüilidade no centro, na periferia. As preocupações das crianças resumiam-se nas lições da escola com o olho na palmatória de madeira reforçada ou no corre-corre geral dos arautos justiceiros.
Hoje Santana vive uma apoteose de golpes baixos que envergonha o cidadão decente. A luta pela política entra numa fase de decadência e barbárie, rememorando a Roma dos césares, sem respeito, sem moral, sem dignidade. Até parece que existe uma nova seita pregando a vida imortal com pele, osso, carne e nervos somente para políticos profissionais.  
É certo que as crianças tinham medo de Aloísio Firmo e de Genésio, mas deles nunca vomitaram com nojo do que estão fazendo agora.
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domingo, 6 de julho de 2008

Um Gênio na Feira


UM GÊNIO NA FEIRA
(Clerisvaldo B. Chagas-3.5.2008)

Alguém já disse que o governo deveria sustentar os artistas populares que viveriam para produzir o belo. Caso isso fosse concretizado, com certeza estaria na lista o cego pedinte das feiras nordestinas, Zequinha Quelé.
Criatura do Sertão alagoano, morador do sítio Travessão, Zequinha apresentava-se com o seu guia nas feiras de Santana do Ipanema e dos municípios circunvizinhos. Branco, simpático, cabelos curtos e lisos, o poeta-repentista mostrava-se bem vestido. A tiracolo usava embornal de mescla e em uma das mãos conduzia frenético ganzá de flandres. Angariava esmolas circulando pelas feiras, apoiado no ombro do guia. A outra mão agitava o objeto regulador musical da cachoeira de estrofes que jamais parava o jorro espetacular. Mandava o cliente para o céu ou lhe oferecia gratuita e vergonhosa reprimenda. Pedia versejando, agradecia versejando, perdoava ou não versejando. Às vezes o poeta agitava a mão de apoio perto da face, dando suporte ao ritmo do ganzá.
Zequinha Quelé, vate e gênio do povo, não teve a sorte de um Chico Nunes de Palmeiras dos Índios, pesquisado pelo ator Mário Lago.
Zequinha era poeta da segunda metade do século XX. A última notícia foi a de que estaria morando no município de Monteirópolis; mas isso há uns dois anos, aproximadamente.
Em São Paulo, encontrei-me com um cidadão — emigrante de Santana há três décadas — que me perguntou se Zequinha Quelé ainda era vivo. Em seguida narrou-me um fato que jamais lhe saíra da memória: O cego vinha pedindo na feira; pedindo e cantando; cantando e pedindo em alta velocidade. De repente alguém respondeu aos seus apelos: “— perdoe ceguinho, não tenho agora”. Quelé, imediatamente passando adiante, foi alertando ao desavisado no seu ritmo cachoeira:

“A bacia do perdoe
Deixei lá no Travessão
Sou homem não sou menino
Todo ser é assassino
Só meu padre Ciço, não”

A pesquisa está aberta. Da minha parte, foi o mínimo e o máximo que pude fazer pelo gênio esquecido; personagem marcante das feiras do meu estado.

· Especial para a ACALA e para o escritor Antonio Machado
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sexta-feira, 4 de julho de 2008

Resgatando (1)



RESGATANDO (1)
(Clerisvaldo B. Chagas-20.6.2008)

Hélio Cabral, “O Prefeito Cultura”, gênio forte e traje elegante, havia fundado o museu, a biblioteca e promovido a primeira feira de livros de Santana do Ipanema, Alagoas. Nas faldas do serrote do Pelado, esse chefe do Executivo ainda construiu a pracinha das Coordenadas bem defronte ao antigo Posto Esso, terreno atualmente ocupado pelo prédio da Caixa Econômica Federal. Pensando em melhor informar ao povo do Município, àquele dinâmico prefeito criou na sua gestão 1956-60, uma rede de comunicação através de sistema de alto-falantes espalhados na cidade. Pelo menos um desses alto-falantes ficava em um poste de madeira na entrada do beco defronte a atual escola Ormindo Barros. Outro anunciava acima de uma das janelas do “sobrado do meio da rua”, virado para a Praça Manoel Rodrigues da Rocha. Na Rua e Bairro São Pedro, parte de cima, havia novo poste de madeira com alto-falante, bem defronte a fabriqueta de calçados do Senhor José Elias. A luz elétrica da urbe dependia de um motor alemão que funcionava na Avenida Nossa Senhora de Fátima, no prédio onde atualmente trabalha a Câmara de Vereadores Tácio Chagas Duarte.
Havia um doido em Santana, chamado Justino. Diziam algumas pessoas que o maluco fora sapateiro e ótimo jogador de futebol do Ipanema. Justino era alto, rijo, usava cabelos compridos e barba negra. Morava num caminho secundário que dava para o açude do Bode, hoje, quase defronte a UNEAL. Justino andava resmungando e representava perigo dependente do momento. O maluco perambulava com freqüência pelo trajeto entre sua casa e a cidade através de um corredor margeado por aveloz. Nesse trajeto, Justino chegava a um largo, após o corredor, passando defronte a casa de Alfredo Forte. (Alfredo era um velho mal humorado e esquisito que tinha uma casa na Rua Antonio Tavares, também esquisita, onde exercia a profissão de sapateiro. Morava com duas filhas que não saíam de casa e raramente eram vistas). No largo, do outro lado, defronte, morava o Lulu Félix numa casa de alpendre diante de um pé de mulungu. (Félix, sempre de paletó, baixinho e sério, era contador de casos. No bom sentido, era considerado personagem “folclórico” e o maior mentiroso de Santana). Fora aquelas duas casas, perto da entrada da Maniçoba, tudo era vazio. Justino gostava de descansar na varanda da casa de Lulu Félix, num banco de pelar porco. Quando alguém da cidade gritava pelo doido chamando-o Maceió, Justino ficava violento e era capaz de tudo.
Uma criança deixava diariamente a Rua Antonio Tavares e seguia em direção ao Bairro São Pedro. Chapéu de palha estilo caubói, barbicacho passado sob o queixo, disfarçava as primeiras angústias ouvindo as músicas do poste da casa de José Elias: Nelson Gonçalves, Luís Gonzaga, Ivon Curi mais os anúncios da Prefeitura e as propagandas que havia: a, e i, o, urso, Urso, o melhor calçado da praça... Às vezes o garoto parava no boteco de Seu Ermírio, situado na esquina do último beco da Rua São Pedro que dava para o rio Ipanema. Pedia um refresco cujo valor era quinhentos réis. Raramente a criança dispunha de destões para pedir um copo de canelinha, considerado refresco mais saboroso. Dali em diante tinha início uma perspectiva doentia no seu trajeto. Teria que arrebanhar o gado no cercado do pai e que ficava no final do corredor de aveloz, trazê-lo, descer pelo beco citado até o Ipanema e dar de beber. Depois, teria que conduzir o rebanho até o final da Rua Prof. Enéas (antiga Rua José Quirino), onde o seu pai possuía um excelente cercado. Ali o menino, pinicava palma, conduzia água para mudas de coqueiros, cortava abóboras para os porcos.
Mal o futuro escritor deixava o boteco de Seu Ermírio, descendo rumo a Maniçoba, passando pelo terreno de Otávio “Magro” (Otávio da salgadeira), o medo de Justino começava sua ronda. “Será que o louco estava no trajeto?” Se Justino estivesse na casa de Lulu Félix, não encontraria com ele no corredor de aveloz. Caso não estivesse, o receio, a agonia, o desespero aterrador tomariam conta do seu peito repleto de inocência. Cada passo na estrada de aveloz representava uma punhalada profunda. Olhos atentos à curva do caminho, aos fios de arame da cerca de Alfredo Forte, a um possível buraco de fuga diante de uma simples, lépida, repentina aparição do doido barbudo de Santana. Foram inúmeras as vezes que o meu coraçãozinho ameaçou saltar do peito e sair correndo daquela coisa horrorosa chamada Justino.
Acho que todo escritor tem um Justino na vida.

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quinta-feira, 3 de julho de 2008

ODE AO RIO IPANEMA


ODE AO RIO IPANEMA
(Clerisvaldo B. Chagas-2.10.2007) Especial

Era um imenso e formidável lastro. Um paizão de 220 km coleantes entre Pernambuco e Alagoas.
Os desbravadores logo perceberam que o rio Ipanema — mesmo temporário — representava palpitações de vida. Uma veia grossa que irrigava todo o corpo sertanejo. E o pai amigo, generoso e bom, logo presenteou o semi-árido com uma cidade morena, dourada, plena de Sol e ornada de colinas, chamada Santana.
As águas vivas sobre areias, as águas serenas sob as areias, as agitações supremas de cima, as quietudes divinais de baixo, o tempero salobro da ribeira, mataram a sede da “Rainha do Sertão”. E o rio gritou bem alto: — “Façam as casas, eu dou a areia; fabriquem os tijolos, eu cedo o barro verde; definam seus tetos, eu contribuo com argila; lembrem dos alicerces, eu tenho pedras milenares; tragam os animais, usem meus pastos; provem dos meus deliciosos peixes; e... Quando estiverem cansados do trabalho dignificante, durmam sobre colchões e descansem com os travesseiros dos meus juncais.
E as espumas desciam das roupas sob lindos cânticos das lavadeiras caboclas; os dorsos robustecidos submergiam nas águas turvas; e o sopro da leve brisa amenizava o suor negro dos corpos noturnos e nus.
Grita Santana, teu nascimento! Berra Santana, tua expansão! Enfeita teus aromáticos cabelos com a flor da craibeira. Embala teu berço com o sussurro do Cruzeiro, com a lenda da caipora, com o doce murmúrio dos regatos em mês de julho.
Silêncio que esvoaça o gavião; câmara natural que filma e comanda os céus de borboletas e bem-te-vis. Olhos mágicos que perscrutam o Panema, e a flora, e a fauna, e o relevo privilegiado do lugar. Sentinela altivo das paixões, dos amores... Dos queixumes do povo santanense.
Deus fez o Ipanema, o Ipanema fez Santana. E Santana observa seu criador pelas frestas das portas, pelos rachões das janelas, pelas varandas de aroeiras... Pelo mormaço das tardes preguiçosas ou pela íris da mulata no cio.
Erga-se meu herói sertanejo, que o astro-rei traz a luz no oriente; que os matizes do azul marcham no firmamento. Ecoaram as trombetas dos pardais.
Breve, breve, minha cidade estará de pé: bênção, meu Panema. Deus
nos ilumine neste novo dia.
Para os escritores Marcello Ricardo de Almeida, Antonio Machado, Carlindo de Lira Pereira, Aleixo Leite Filho e meu amigo Gilson Farias. Aos escritores de Blumenau.

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MISSA DE TOSTÃO


MISSA DE TOSTÃO
(Clerisvaldo B. Chagas-3.7.2008)

Nada melhor na vida de que uma festa no interior. Esse tipo de evento, quando é religioso, costuma mesclar rezas e ladainhas com o profano, atraindo assim participantes de todas as partes do estado.  Além da ingenuidade natural de motivos, o encontro com parentes, camaradas, velhos conhecidos, a tradição ajuda ainda no combate do estresse. Muitas histórias são repassadas para frente com muitos aspectos gozados, menos graves, curiosos.
Lá pela década de 40, a festa da padroeira corria solta em Santana do Ipanema. Na praça defronte a Igreja Matriz, na subida para o Bairro Monumento, no Largo da Feira, barracas de todo tipo faziam avenidas. Bazares, pipoqueiras, bingos, curres, ondas, bares, restaurantes, e até balões e banda de música atraíam o povaréu sequioso por novidades. A multidão espalhava-se pelo centro, pelos becos, pelas ruas... Rindo, comendo, gargalhando, na gastança colorida dos festejos. Os matutos exibiam roupas novas, os citadinos usavam gravata e os cobres sentiam cócegas nos bolsos, nas bolsas, nos bizacos, nos lenços de pano das velhotas.
No interior da Matriz iluminada, a padroeira aguardava pacientemente no seu altar, a celebração da missa. Bancas lotadas, fiéis ansiosos pelo início da celebração, olhares furtivos para a sacristia e nada do padre celebrante. José Bulhões, sacerdote local da paróquia de Senhora Santa Ana, por isso ou por aquilo, estava afastado das atividades. Para as pregações litúrgicas da novena fora enviado para Santana um padre proveniente de Viçosa. Acontece, entretanto, que o religioso de Viçosa, cidade da zona da Mata alagoana, era chegado a um joguinho de dados. E jogos de dados era o que mais havia na festa de Senhora Santa Ana.
Como auxiliar do Padre José Bulhões, fazendo às vezes de sacristão, havia um sujeito chamado Caiçara; folclórico, hilariante e com alguns vícios, o sacristão estava sempre na boca das anedotas de Santana.
Naquela noite de festa, Caiçara vendo aproximar-se a hora da Liturgia e o povo impaciente, foi procurar o padre de Viçosa. Encontrou-o justamente diante de uma banca de jogo, animado com o movimento dos dados no pano verde da banquinha:
— Padre, só falta dez minutos para a missa.
E o padre, sem olhar:
— Já vou, já vou.
Caiçara retorna à igreja. Momentos depois novamente chega à banca:
— Padre, padre, só falta cinco minutos.
Novamente ouve a resposta:
— Vá andando. Vá andando que estou indo.
Caiçara parte para a igreja, dar uma espiadela e volta da porta mesmo:
— Padre, não dar mais para esperar. Estamos em cima da hora.
E o padre de Viçosa, sequioso no vício do “caipira”, vira-se quase aborrecido para o sacristão e afirma com todas as letras mastigadas:
— Caiçara, se o povo da igreja pensar bem, vai descobrir que u’a missa celebrada por mim e auxiliada por você, não vale sequer um tostão furado!
E voltou a jogar os bozós de osso no pano do vício desumano.
Ê missa de tostão!...
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quarta-feira, 2 de julho de 2008

O MUSEU DE ALBERTO AGRA


O MUSEU DE ALBERTO AGRA
(Clerisvaldo B. Chagas-21.6.2008)

Alberto Nepomuceno Agra, em Santana do Ipanema, Alagoas, ainda é proprietário de farmácia. Foi herói de guerra, ex-pracinha, iniciou uma linha de transporte Santana-Maceió no início da segunda metade do século XX, em 1953. Desistindo do negócio após longa prestação de serviço ao povo sertanejo, Alberto instalou a farmácia que ainda continua a servir na Rua do Comércio, Praça Manoel Rodrigues da Rocha, em 1954, adotando o nome de “Farmácia Vera Cruz”.
Atuando na sociedade santanense em todos os segmentos desenvolvimentistas — homem honesto, rígido e de rara inteligência — Alberto também foi diretor do Ginásio Santana e professor de Geografia de atuações brilhantes. Foi ainda um dos fundadores da Companhia Telefônica de Santana do Ipanema em 4 de setembro de 1964, tendo sido seu primeiro diretor. Alberto também se tornou fazendeiro e atualmente com seu filho Albertinho dão importantes lições de Ecologia, preservando uma área de caatinga nas imediações do serrote do Cruzeiro.
Como professor de Geografia, venho com muito orgulho da “Escola” de Alberto Agra, o melhor professor da matéria, meu ícone, padrinho do assunto que me fez ocupar a cabeça da primeira fila. Alberto é um dos três intelectuais que admirei em Santana do Ipanema. Sempre quis um dia transformar aquele trio em quarteto; consegui.
Talvez desencantado com o museu de Santana — desprezado e desmontado através dos anos — o professor, fazendeiro e comerciante Alberto Nepomuceno Agra, resolveu utilizar o espaço superior da sua farmácia para instalar um museu particular voltado mais para a memória de II Guerra. Ali foram colocadas peças do seu antigo traje de soldado; expostos nomes de colegas santanenses também heróis; símbolos e fotos que marcaram o conflito de 1945.
Não sabemos ainda como funcionará a nova casa, se para os amigos da cultura apenas ou para a população em geral. Uma coisa é certa: a organização, palavra que sempre caracterizou todos os empreendimentos do professor Alberto. Ele sabe muito bem que se não houver controle, o museu correrá o mesmo risco do municipal: violentamente dilapidado após a gestão Hélio Cabral de Vasconcelos. O museu de Alberto Agra, todavia, não deverá expor apenas motivos de guerra, mesmo que ele assim o almeje. É que os conhecedores da seriedade do seu fundador, vão querer doar peças raras da história e das artes de Santana. Eu mesmo já cooperei com algumas doações.
Desejamos ao professor Alberto Nepomuceno Agra, êxito crescente na sua iniciativa cultural. É preciso possuir muita força de vontade, gostar do que faz e acreditar em chuvas nos desertos, mesmo que elas sejam raras, enfeites, miragens, porém, profundamente refrigeradoras do corpo, da mente, da alma.

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terça-feira, 1 de julho de 2008

PADRE CÍCERO
(Clerisvaldo b. Chagas-2.7.2008)
Nasceu Cícero Romão Batista em 1844, ordenou-se em 1870 e chegou ao Juazeiro no final da década de 1880. Foi eleito prefeito em 1911.
O Padre Cícero do Juazeiro começou em sua fama a partir do que foi chamado "milagre da hóstia". Nessa ocasião, a hóstia teria sido transformada em sangue na hora da comunhão, na boca de uma beata. Teve início aí às grandes levas de católicos em busca daquela cidade e do futuro líder espiritual. Envolvido depois na política e em episódios de embates, Cícero angariou ciúmes civis e religiosos pela sua condição de arrebanhar multidões em torno de si.
Mesmo afastado da Igreja e até por ela excomungado, aumentavam a cada dia as levas dos que o procuravam em busca de conselhos e curas das suas mazelas.
Os testemunhos a respeito dos seus milagres, pelos sertanejos nordestinos, não caberiam em inúmeros livros de mil páginas. Pela zona do Sertão alagoano não se conversa com os mais antigos que não tenham pelo menos um milagre a ser contado.
Não importa os que falam contra Cícero. As ondas de milhares e milhares de pessoas que ainda hoje procuram o Juazeiro agem como se o mito religioso ainda estivesse na Terra. Centenas de ônibus, caminhões paus-de-arara e automóveis lotam ruas e mais ruas do Juazeiro do Norte em busca de sua estátua, da casa onde viveu, das suas relíquias pessoais. Milhares sem conta de promessas são pagas nos dias de Nossa Senhora das Dores e nos festejos de morte do Padre Cícero.
Graças a sua fama, a cidade do Juazeiro progrediu e abriga, hoje, incontáveis pequenas indústrias de artigos religiosos. Juazeiro do Norte tornou-se, sem dúvida alguma, a Meca do Nordeste brasileiro.
Em Santana do Ipanema, estado de Alagoas, em poucas horas colhem-se inúmeros milagres a ele atribuídos em entrevistas com os mais velhos. Pessoalmente tenho alcançado milagres antigos e recentes, além de narrativas familiares com o mesmo direcionamento.
O Padre Cícero do Juazeiro continua forte na execução de milagres... Tão forte ou mais de que quando habitava o simpático vale do Cariri.
Finalmente a Igreja Católica rendeu-se às virtudes daquele já consagrado pelo povo. Não existe nada que possa barrar os sentimentos profundos de uma população que tem fé. E tem fé não somente pela fé. Mas pela fé comprovada na realidade dos benefícios longamente expostos por indivíduos em cada metro quadrado da terra nordestina.
Cremos que hoje, amanhã ou depois, o Brasil terá oficialmente o seu santo genuinamente brasileiro, nordestino e sertanejo, quebrando o elitismo de santos europeus.
A Igreja Católica somente ganhará, reparando a tremenda injustiça que fez com o santo do povo. Aliás, a Igreja apenas confirmará a vontade do Alto, pois a voz do povo é a voz de Deus.
Inveja existe em todas as instituições e lugares do mundo.

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O RABO DA MÃE


O RABO DA MÃE
(Clerisvaldo B. Chagas-1.7.2008)

Dizem que jogo de azar é coisa do demônio. É coisa do demônio porque vicia, porque defrauda, porque desagrega, porque desmoraliza, porque induz ao suicídio. Quem avalia os vícios da bebida, do fumo e do jogo, costuma colocar o último como o pior de todos por causa dos motivos expostos acima. Entre as várias modalidades do jogo, está o carteado. Neste sistema, o colorido das cartas, a tensão e o silêncio impregnam o ambiente como se os jogadores fossem almas do outro mundo, duendes, fantasmas, seres diáfanos num encontro de surdina enigmática. Os que não apreciam a jogatina, dizem que o inimigo está ali presente comandando a mesa.
No Nordeste brasileiro existem aqueles que gostam de coisas prazerosas como ouvir programas de repentistas. (Repentistas são encantadores de gente). A inteligência, a métrica perfeita, o pensamento ágil, a diversidade criativa, o rebate sensacional, cativam para sempre na cultura popular. Quando as cordas da viola iniciam o baião cadenciado, sonoroso, arrebatador, provocam um êxtase e uma perspectiva no ouvinte ávido por coisas novas, criadas na hora, saboreadas nas rimas magistrais dos violeiros.
Entre os apreciadores do jogo e do repente, estava o funcionário público federal, aposentado, José Maximiliano, em Santana do Ipanema, Alagoas. Baixinho e de gênio irascível, José também tinha veia poética, escrevia alguma coisa e recitava versos aprendidos para os camaradas.
Duas ocasiões de Maximiliano são contadas pelo charadista e enxadrista famoso Antonio Honorato, conhecido simplesmente por Tonho de Macelon. Também de veia poética, e dono de bar, Tonho mantinha o ponto de encontro da boêmia santanense e dos fanáticos por futebol na era de 50. Tonho de Macelon também freqüentava as mesas de jogo nos fundos do bar de sinuca de Manoel Barros no comércio santanense.
Como primeira observação do Tonho, José Maximiliano, ao perder bastante no baralho, deixou o antro pela madrugada, machucado e desesperado por dentro, parou na calçada, olhou o tempo e disse: “Eu só queria que um bicho me comesse antes de chegar em casa”.
Havia um programa radiofônico intitulado “Onde está o poeta?” Maximiliano era ouvinte assíduo do programa. Certa feita, mais uma vez perdendo no jogo e mal humorado, teve  a surpresa de ouvir bem pertinho da orelha palavras macias de Tonho Macelon que acabava de chegar: “onde está o poeta?” E José Maximiliano, doente com o jogo, fulo com a intervenção, descontou de vez o acumulado da madrugada. Aplicou dois murros bem criados na mesa velha de cedro, virou-se para o interveniente, lançou dois olhares de fogo e raiva, e como resposta quente, seca e rápida, atirou o rojão como resposta: “Está no rabo da mãe, seu filho de uma puta!”
Tonho correu para longe e descontou apenas com um riso catita, um riso amarelo, riso de mangação dos desenhos animados.
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