sexta-feira, 29 de maio de 2009

DEIXE O BICHO ENTRAR

DEIXE O BICHO ENTRAR



(Clerisvaldo B. Chagas. 30/31.05.2009)

C. direto: clerisvaldobchagas@hotmail.com

As noites sertanejas são belíssimas no verão. A Literatura está repleta de elogios à Lua cheia; à imensidão de estrelas; ao brilho particular das constelações; à esperança saudosa da Papa-Ceia. Mas o contraste também é verdadeiro. As longas noites de invernos são terrivelmente escuras. Um silêncio infinito toma conta do mundo. Até mesmo os animais notívagos encolhem-se nos seus ninhos, nas suas tocas, nas suas casas. E cai aquela chuva fina, fininha, aramada, trazendo uma frieza macho que doi nos ossos.

Na calma da noite nos sítios, o som se propaga e vai longe para os ouvidos acostumados dos caboclos. É um espocar de foguete; é um tiro de carabina; é o ronco de um automóvel ou mesmo um longo gemido de carro de bois.

Na fazenda do Senhor Dionísio, os trabalhadores dormiam no galpão, quando acordaram assombrados. Dirigiram-se à casa-grande, acordaram o patrão e deram conta do fenômeno: “A zoada enorme de um bicho feroz, desconhecido, vinha rasgando o véu da noite”. Apavorados, os homens perguntavam o que fazer, ao mesmo tempo em que cerravam à porta com travas de baraúna. Dionísio mandou que fizessem silêncio, ouviu o barulho do bicho se aproximando e, com o dedo em riste, resoluto deu a ordem: Abram a porta e deixem o bicho entrar. Foi difícil a obediência apavorante, mas cumprida integralmente. E quando o barulhão estranho chegou ao terreiro da casa-grande, o mistério mostrou-se de corpo inteiro. Tratava-se de um tangerino, vaqueiro areado (perdido) que retornava a Mata Grande, após tanger algumas reses para Santana do Ipanema. Pendurada à sela, o cavaleiro trazia um chocalho numa correia solta. Era aquilo que fazia tanta zoada. Guiado pela chama distante da candeia, o “paladino das trevas” chegou a casa, cumprimentou, identificou-se e contou seu drama curto. Bem informado dos caminhos, recusou hospedagem, agradeceu e foi engolido pela noite. O barulho recrudesceu e foi ficando cada vez mais distante. Foi quando os medrosos da fazenda criaram alma nova.

Quantas vezes temos medo do que não conhecemos! Quantas vezes o receio se aproxima fazendo um barulho enorme, como o vaqueiro invisível de uma noite escura!

Tenho aplicado a lição transmitida pelo meu pai sobre o tio sábio Dionísio Chagas. Quando os inimigos gratuitos, hipócritas, covardes, invejosos, bruxos (a), atacam silenciosos como serpentes ou barulhentos como o vaqueiro perdido, tenho pena deles. Até porque, nunca vi a Natureza deixá-los impunes.

Apiedo-me das suas fraquezas, mas gargalho por dentro: ABRO A PORTA E MANDO O BICHO ENTRAR.


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quinta-feira, 28 de maio de 2009

OLHE A FONÉTICA!

OLHE A FONÉTICA!

(Clerisvaldo B. Chagas.28/29.05.2009)

Tarde Fria era bastante carismático. Risonho, muito risonho o Tarde Fria. Sapateiro na margem direita do Ipanema gozava de um prestígio ímpar. Adorava cantar. O canto para ele parecia preencher todas as lacunas de um homem boêmio e pobre. Às vezes parecia ridículo ao usar palavra longe do sentido. Outras vezes agia como se tivesse faltando um parafuso naquela cabeça briosa. Quando andava pelas ruas não lhe faltava chamado; ou pela brincadeira ou pela popularidade, só se ouviam os gritos de “Tarde Fria”! “Tudo bom, Tarde Fria?” E o sapateiro cantor, paletó curtinho, riso na boca e balanço no corpo, parecia feito de mola no caminhado e no cumprimento aos fãs.

Em Santana do Ipanema, Alagoas, os sapateiros sempre se deram bem com a bola. Nos fins de tarde de todos os dias o futebol corria solto pelas areias grossas do rio seco. Cidade repleta de sapatarias, areias lotadas de jogadores. Foi aí que teve início uma proliferação de times de futebol que não acabava mais. A área rural do Município também entrou na bondade futebolística, gerando agradável lazer aos matutos nas tardes domingueiras. Os anos cinquenta faziam a festa! E tudo isso era incentivo dos jogos do Rio de Janeiro transmitidos pelo rádio ou pelo desempenho do Ipanema Atlético Club que fazia fila nas surras aos adversários. Contratos e mais contratos começaram a surgir entre times da cidade e dos sítios. As pequenas torcidas de bairros aproveitavam a folia sobre caminhões alugados e só retornavam à noite quando saiam as resenhas das rodadas. Quando faltava juiz, qualquer um servia e lá se ia qualquer um.

Quando o São Pedro, time da Rua Antonio Tavares, também formado pelo sapateiro e feirante Zé Limeira, resolveu sair, causou entusiasmo. Iria jogar em lugar do sítio chamado Dorinha (Ô) Pinto. (Até hoje nunca descobri onde fica). Ora, adivinhe, meu caro amigo, quem foi o escolhido para juiz! Sim senhor, ele mesmo, o Tarde Fria.

Uma vez em Dorinha Pinto, o sapateiro boêmio reuniu os dois capitães e ministrou umas advertências com palavras tão belas que ninguém nada entendeu. E já na hora de apitar o início, disse: Tudo aqui tem que ser pela fonética. E só então o jogo começou.

O tempo vai passando e as regras da vida parecem confusas. Pai mata filho, padres estupram, juízes roubam, pessoas mudam de sexo e a chuva sobe. Não seria justo dizer que o passado foi melhor e nem que o presente é maravilha. Mas que está faltando muito coisa está. Um remendo nessas alturas do mundo seria mesmo impossível. Mas, quem sabe se as regras da convivência fossem realmente apreciadas e cumpridas não fariam um planeta melhor? Enquanto isso não acontece, aumenta a miséria, o ódio e o poder bélico das nações. Ah mundo velho desmantelado! Como tudo parecia tão simples como as instruções do boêmio Tarde Fria: Hoje aqui, meus amigos, tem que ser na base da fonética.


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quarta-feira, 27 de maio de 2009

PÃO DE AÇÚCAR

PÃO DE AÇÚCAR


(Clerisvaldo B. Chagas. 26/27.05.2009)

Nos meus romances “Defunto Perfumado” e “Fazenda Lajeado” (inédito), dedico algumas páginas à bela cidade de Pão de Açúcar. O lugar não é histórico somente porque recebeu o Imperador D. Pedro II. Pão de Açúcar foi à base para o povoamento do Sertão alagoano pelos sertanistas, pelos compradores de terras, pelos meeiros, pelos criadores de gado que se espalharam dali por todo o oeste de Alagoas. Os navios subiam de Penedo, pai de todos, com as mercadorias vindas da Bahia e de Pernambuco, fazendo da antiga Jaciobá um próspero entreposto comercial. Os carreiros, os tropeiros e, depois, os caminhoneiros, distribuíam a mercadoria por todo o Sertão e alto Sertão. Também eram escoados os produtos regionais por aquele porto, como feijão, milho, carnes, couros e peles. O intenso movimento no corredor de importação e exportação fez de Jaciobá uma espécie de capital avançada. As formas de fazer açúcar, parecidas com suas montanhas, deram origem ao nome atual da cidade que nunca deixou de ser o “espelho da lua”. Mas, o visionário Padre Francisco Correia, dizia: Hoje Pão de Açúcar, amanhã pão de areia.

A construção de estradas para a capital foi deixando Pão de Açúcar na contramão. A ponte sobre o rio são Francisco nunca foi construída e, finalmente a hidrelétrica de Xingó selou a profecia do Padre Francisco. Para quem já não tinha o antigo comércio, herdar o rio seco, assoreado, foi mesmo uma tragédia. Várzeas e lagoas sem água são várzeas e lagoas sem peixes e sem arroz. Muitos pescadores viraram artesãos, agricultores... Músicos. Caiu a navegação e o padrão de qualidade ribeirinha.

Resta a Pão de Açúcar o turismo como a grande saída. A cidade nunca perdeu a beleza. O visitante se encanta com a imponência da sua igreja; com o casarão que hospedou D. Pedro II; com a arquitetura do seu casario; com o relevo e a hidrografia do lugar. As histórias de Lampião, a proximidade com a hidrelétrica de Xingó; o folclore e a fama de ser a terceira cidade mais quente do Brasil são armas poderosas para erguer a terra de “Seu Dema”, escritor sanfranciscano que se encantava com meu primeiro romance: “Ribeira do Panema”.

Vamos aguardar iniciativas dos filhos de Pão de Açúcar, para que todo seu patrimônio histórico-cultural seja mostrado ao mundo. Investir no turismo é investir na melhoria do padrão de vida; é descobrir-se para o Brasil, para a Europa, para a América do Norte. Mesmo iniciando com o turismo interno, alagoano e nordestino, já seria uma imensa riqueza para quem tem o potencial da sempre encantadora Pão de Açúcar.


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terça-feira, 26 de maio de 2009

A PITÚ COMEU

A PITÚ COMEU

(Clerisvaldo B. Chagas. 26.05.2009)


Quem conhece o mundo dos cantadores sabe. Existem os encontros de cantorias em residências, em festivais, em congressos. As histórias dos bons encontros são repassadas para o planeta da viola. Particularmente circulam estrofes de boca em boca que foram criadas em situação de debate entre dois cantadores ou isoladas e ocasionais. Em ambas as situações, esses versos tornaram-se imorredouros e são repassados de geração a geração. Falemos aqui apenas das estrofes ocasionais. Acontecem quando um repentista está viajando ou chega a um lugar qualquer e faz uma estrofe com alguma coisa que lhe chamou a atenção. Se os versos forem realmente bem feitos e alguém anotá-los na cabeça, vai passando à frente e percorre assim o Nordeste. Toda estrofe tem uma história. Versos sem história não tem sentido. São inúmeras as estrofes ocasionais que a gente houve. Pesquisadores já publicaram livros contando várias delas. Eu mesmo desisti de um trabalho desses quando vi que era preciso viajar muito para colher os seus verdadeiros autores que são trocados por outros. Exemplo famoso de uma estrofe ocasional:

Certa vez um poeta viajante teve recusado um pequi para matar a fome. Ao chegar a pé no povoado próximo, dizendo ser repentista, recebeu uma proposta que se provasse o que estava dizendo não pagaria nada. Não se fez de rogado:



“Acredite meu senhor

Eu gostei muito daqui

Terra de mulher bonita

De cabra bom no fuzí

Mas em redor de uma légua

Tem cabra fi duma égua

Que nega até um pequi”



O saudoso Adeilson Dantas, pioneiro do rádio no Sertão, resolveu pesquisar estrofes interessantes para enfeixá-las num livro. Convidou-me para viajar a cidade de Monteiro, o “Vaticano da Poesia”. Não realizamos o intento. Entre as várias estrofes colhidas pelo radialista, duas me despertaram interesse. Foram feitas na hora pelo poeta santanense Zé de Almeida. A primeira, não vou contar para evitar constrangimento com o alvo. Um cidadão de Santana iria ser candidato a vereador e pediu uma estrofe. Como Zé de Almeida não gostava do indivíduo fez a estrofe ao contrário, de modo chulo. A segunda vamos ouvir Adeilson:

“Zé de Almeida estava no comércio de Santana, no bar do comerciante Mário Pacífico. Um locutor muito apreciado na cidade, chamado Umberto Guerrera — que exagerava na bebida — ia passando na praça”. E eu vou dizer o que mais, depois que Almeida o viu e recitou de repente?:



“Lá vai Umberto Guerrera

Locutor amigo meu

Já perdeu até as contas

Das cachaças que bebeu

Tá vivo daqui pra cima

Pra baixo a Pitú comeu”
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segunda-feira, 25 de maio de 2009

RIBACÃO DE CARREIRO

RIBACÃO DE CARREIRO

(Clerisvaldo B. Chagas. 23.05.2005)

Quando o jipe amarelo do IBGE roncou na caatinga bruta, sentimos que estávamos perdidos. Três pesquisadores procurando rumo dentro da mata.

Alto Sertão de São José da Tapera, em Alagoas. O dia findava. Constantes empurrões no veículo pelo terreno enlameado nos deixavam exaustos. Ligeiramente a noite chegou e os céus precipitaram uma chuva irritante para piorar o momento. Finalmente conseguimos avistar uma casa sem varanda e dela nos aproximamos. À porta, sobre três degraus, surgiu um galego que nos acolheu cheio de boa vontade e cortesia. Adentramos a residência, tímidos, cansados, chateados, porém, o homem e sua família procuravam nos deixar tranquilos. Indicado por ele — que exercia a profissão de carreiro — fomos ao banho em um riacho próximo aonde corriam as águas de inverno. Que banho maravilhoso! Repelido o enfado, retornamos à casa do bom samaritano que nos ofereceu a única coisa que havia para comer, tal ribacão. Indaguei o que era aquilo. Descobri uma comida grosseira à base de feijão e arroz esquentados juntos, sem complemento. Comemos o ribacão como se ele fosse a única comida do mundo. Foi o prato mais gostoso que já comi na vida.

Antigamente muitos estudantes deslocavam-se a pé até a escola. Andavam muito mais de légua todos os dias para vencer através das letras. Superavam o sol, a chuva, o frio, o calor, as enchentes, os caminhos esquisitos e mesmo as noites terrivelmente escuras. Além das jornadas de ida e volta, os seus pais ainda bancavam o material didático, o lanche e, às vezes, também à mensalidade da escolinha particular. Desses sofridos alunos, inúmeros tornaram-se professores, políticos, comerciantes, empresários, funcionários públicos, enfim, honraram todos os segmentos sociais. É que, apertados pela necessidade, sabiam valorizar o saber. Foi assim em Santana do Ipanema nas escolas de Enéas, de Josefa Leite, de Adélia, de Zé Limeira, de Ernestina... Depois com Flora, com Narair, com Helena Oliveira, com o grupo Padre Francisco, com o Ginásio Santana.

Venho detectando a apatia estudantil há vários anos. Os pedagogos das teorias não aceitam. Entra didática e sai didática e o problema não é resolvido. Não existe mais respeito ao mestre, só o aluno possui regalias. Claro que não estamos falando sobre todos os casos. Recentemente saiu na televisão uma pesquisa em que 40% dos alunos não demonstravam interesse pelos estudos. Isso veio comprovar o que já havíamos constatado na prática.

Hoje o governo manda o veículo à porta do aluno, fornece os livros, o uniforme, a merenda, prêmios, boa palestra e financiamento. Mas o resultado continua nos 40%. As escolas vão ficando vazias. Na certa esse altíssimo índice ainda não despertou para o valor do estudo. Está perdido na mata. Ainda não encontrou a casa do galego na caatinga bruta. Com toda certeza está faltando comer ribacão de carreiro.


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sexta-feira, 22 de maio de 2009

O ESTOURO DO CINEMA

O ESTOURO DO CINEMA

(Clerisvaldo B. Chagas. 22/05/2009)

Era uma noite muito calma no Bairro Monumento, em Santana do Ipanema, Alagoas. Uma das poucas diversões noturnas, o cine Glória, estava apinhado. O filme em cartaz era o clássico “Aída”, mas o motivo dos frequentadores continuava sendo a falta de opção. Havia aula no Ginásio Santana. Eu estava na Praça de Bandeira, bem defronte ao estabelecimento de ensino, pensando como assistir o filme. Bem que o ato de gazear estava decidido, mas como arranjar o dinheiro do ingresso? Da esquina da praça lançava o olhar comprido para o cinema que ficava a uns cem metros ladeira abaixo. Os meus colegas por certo estavam na Geografia, na Matemática... No Latim do casarão. Ninguém ali para compartilhar o desejo ardente de está no prédio do cine. Meus passos rodavam como o compasso de dona Déa, professora de desenho. Subitamente aconteceu:

Poucas pessoas espirraram de dentro do cine Glória numa velocidade doida! Logo atrás, o grosso da multidão ensandecida surgiu na rua levando o terror de dentro do prédio. Uns corriam sem sapatos, outros pulando e, outros ainda carregando no peito as cadeiras arrancadas com o impacto dos corpos eletrizados. Muitos pegavam carona na garupa dos corredores da frente. Ficaram pelo caminho relógios, pulseiras, brincos, retalhos de roupa... Era a elite de Santana desmanchando-se na fuga em massa do cinema. A calçada residencial de João Aquino –— do outro lado da rua ­— ficou repleta de frequentadores. Desci correndo para saber o que acontecera. Ora, havia sido apenas um simples problema no trilhar da fita, acompanhado de estouro. Ninguém havia esperado para ouvir explicações. Quem era maluco? Pernas para que vos quero. Vendo que nada mais acontecera, aliviada a tensão, vieram os risos, as gargalhadas, a contabilidade dos prejuízos. Não temos lembrança se o povo voltou ao cine. O que mais me chamou a atenção foi que na desarvorada carreira, o silêncio foi total. Terror estampado na face, o povaréu apenas tentava escapar mudo aonde os olhos dilatados e as pernas ligeiras foram destaques.

Quebrada a monotonia das noites santanenses, chegou até a minha cabeça uma importante pergunta. Vale à pena sofrer por um desejo inalcançável? Será que eu não teria sido atropelado gravemente se tivesse ido assistir “Aída”? Nesse caso quem me salvou foi à falta de dinheiro. Moral do episódio santanense: “nem sempre o que desejamos com tanto ênfase é o melhor para nós”, notadamente quando iniciamos mal. Dessa vez, matando as aulas do Ginásio Santana.

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quarta-feira, 20 de maio de 2009

ZÉ GANCHO

ZÉ GANCHO
(Clerisvaldo B. Chagas. 20/05/2009)

Nos anos 50 havia em Santana do Ipanema, estado de Alagoas, inúmeros profissionais com artes peculiares. Destacavam-se barbeiros, sapateiros, alfaiates e funileiros (chamados por aqui de flandreleiros). O fladreleiro trabalhava com folhas de flandres principalmente no fabrico de calhas (bicas) para residências e casas comerciais. Numa época em que muito se precisava de luz elétrica, surgiam os candeeiros de flandres e de latas feitos nas tesouras afiadas e nas pancadas dos macetes. Ouviam-se de longe as compassadas batidas do martelo na bigorna dos ferreiros. Mas essas batidas eram diferentes, metálicas e irritantes se fossem de perto; saudosas se fossem de longe. Nas casas dos funileiros, não. As pancadas dos macetes eram fofas como se eles, os macetes, estivessem envolvidos em panos.
Entre os fladreleiros conheci a avó do escritor Oscar Silva, defronte à casa do meu pai. Josefina, já descrita aqui em outro artigo, possuía a voz do martelo dos ferreiros, porém, trabalhava com a lata e o flandres. Na mesma Rua Cleto Campelo (antes: do Sebo; depois: Antonio Tavares), também residia e trabalhava no mesmo ramo, o homem conhecido por Zé Gancho. “Zifina” falava quebrando metal e arrastando a voz. Zé Gancho arrastava a voz baixa numa preguiça dolente, dormideira... Sem fim. Morava a alguns metros da esquina do beco de acesso ao Ipanema, bem perto da Cadeia Velha.
Ora, eu não sabia que o artista não gostava de ser chamado Zé Gancho. Com seu nome próprio era uma ovelha. Com o apelido, um leão. Certa feita eu passava pelo beco quando vi lá em baixo várias pessoas olhando para o Ipanema e para o céu. Desci até o povo. O flandreleiro falava de cheia, descrevia chuva, dissertava o tempo. Com a minha precipitação fui chegando e ouvindo o homem dizer: “falam que ontem choveu foi muito por aí”. Eu, menino decepcionado com o assunto fui dando às costas e dizendo: “choveu b...”. Foi aí que senti a mansidão de Zé Gancho transformando-se em soldado de polícia. Tive medo que ele me conhecesse e fosse fuxicar a meu pai. Ah! Seu Manezinho não alisava.
Vejo com grande alegria o Ceará valorizando os homens experientes do Sertão; convidando-os para opinarem sobre o tempo juntamente com os cientistas; chamando-os de “profetas da seca”; levando a sério e divulgando suas previsões baseadas nos detalhes da Natureza. São as floradas do mandacaru, as pedras de sal, o dia de São José, o movimento das formigas e muitos outros sinais. Quando a ciência se alia à tradição, a força é maior, o êxito é certo e o ganho é dobrado.
Quando assisto na TV os encontros coerentes da Terra de Iracema, lembro das esperanças do flandreleiro querendo afastar a seca. E quando chega a notícia de chuva naquela região, eu me pergunto se aparece algum menino desinteressado para dizer: “choveu b...”.
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terça-feira, 19 de maio de 2009

CIPÓ DE CATINGUEIRA

CIPÓ DE CATINGUEIRA

(Clerisvaldo B. Chagas. 19/05/2009)

João Yoyô Filho era natural do município de Olivença, Alagoas – filho do ex-tropeiro e depois dono de terras naquela região, Capitão Yoyô.

Ainda pequeno, conheci João – uma figura inusitada e compadre do meu pai – como comerciante de loja de tecidos à Praça Coronel Manoel Rodrigues da Rocha. Sua esposa Leopoldina, professora do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, também era figura querida nos meios estudantil e social. Nessa época, a loja de João Yoyô não ia muito bem. Enquanto as prateleiras mostravam os fundos das paredes, aquele homem alto de fala mansa, com idade avançada, estudava sem parar rumo ao Direito. João Yoyô Filho havia sido o idealista e um dos fundadores do Ginásio Santana sendo seu primeiro diretor. Conseguiu o seu objetivo nos estudos e chegou a Juiz de Direito em Santana do Ipanema. Isto causou admiração geral pelo exemplo da força e da vontade.

Ainda nas funções de advogado, o Doutor João Yoyô Filho, com toda sua calma, viu-se um dia no “prédio do meio da rua” onde funcionava o Tribunal do Júri. Como debates entre advogado e promotor eram uma das poucas atrações da cidade, no “prédio do meio da rua” não cabia mais ninguém. O réu fora acusado da morte de um sujeito em consequência de uma pisa aplicada anteriormente. O doutor defendia – muito devagar – a tese de que a vítima não havia morrido em consequência da surra, “pois o réu tocara na vítima apenas com um simples cipozinho de catingueira”.

Pertinho da minha tenra adolescência, estava o funcionário do Banco do Brasil, João Farias. Fumante inveterado, o caladão funcionário irritou-se com a morosidade do defensor e disse baixinho lateralmente: “Você já viu catingueira dá cipó seu menino?”’ Algumas pessoas riram e Farias desceu o sobrado.

Quando a gente lê os jornais do País, nota que a malandragem política cobre de vergonha o nosso Brasil. Que esperteza e criatividade tem o político brasileiro para levar os bens do povo! E as tais brechas da lei? E as famigeradas veredas do cinismo? O povo pouco reage e apenas deixa cair o queixo para comentar na esquina. A impunidade da farra dos ratos não pode ser negada.

O Doutor João recebeu homenagem póstuma com nome de rua. A professora Leopoldina mudou-se para Maceió; e a filha (Madje ?) formou-se em Medicina. Foram pessoas amadas em Santana.

Entretanto, ainda hoje não decifrei o enigma de João Farias. Quanto aos corruptos desta nação de Cabral que matam o povo brasileiro, não de surra, mas surrupiando a fatia do seu pão, não sei como ficariam no “sobrado do meio da rua”. Infelizmente os seus advogados continuam com a tese do Doutor João Yoyô Filho: “Eles não matam ninguém, apenas tocam no povo com um simples cipozinho de catingueira”.


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