terça-feira, 27 de abril de 2010

O PÉ DE JESUS

O PÉ DE JESUS
(Clerisvaldo B. Chagas. 28.4.2010)
Desafiando o espaço, impávido e formoso, estava ali o serrote do Cruzeiro, representando a religião da terra. O cimo rochoso do monte testemunhava a multidão dos que subiam até ali. E eu, nos meus espertos 10 ou 11 anos avisava a minha doce mãe Helena Braga sobre a intenção de subir o morro. A encomenda naqueles dias era sempre repetida: trazer imbé para enfeitar os jarros de casa. E lá ia eu satisfeito com meus companheiros, vadeando o Ipanema, subindo o Cachimbo Eterno, inclinando o dorso pelo aclive do serrote. Vitória, mais uma vitória ao chegar ao topo esbranquiçado. A água verde empoçada no lajeiro, pontos de dormidas de urubus, macambiras, urtigas e o cenário deslumbrante da cidade aos nossos pés. Capelinha singela, santos no altar e o cruzeiro enorme abraçando as casas tão longe, de Santana. “Daqui Lampião observava a cidade; recebia verba dos coiteiros. Sob essa cruz tem um tesouro enterrado. Olhe aqui a marca do pezinho do menino Jesus quando passou fugindo para o Egito”. Íamos a todas as extremidades do monte, olhar, se extasiar, sonhar. Com o tempo passando e já com sede, íamos coletar flechas das macambiras e brincar de guerra uns com os outros. Não podíamos esquecer os imbés encomendados que diziam espantar as cobras. E essas plantas estavam perto das pedras que rodeavam o morro. Depois descíamos felizes e saudosos para entregar os pedidos e receber os beijos carinhosos em casa. Certa feita, em uma dessas visitas, a capelinha estava em ruínas. Alguns adultos estavam por ali. Um deles dirigiu-se a nós, pediu silêncio com o indicador a boca. Depois me pegou delicadamente pela cintura e me ergueu até o altar, deixando-me junto com a santa dando uma lição educada e tão cheia de ternura a respeito das imagens. Nunca esqueci esse gesto carinhoso e bem significativo na minha vida, por um homem que era considerado mal-humorado por muitos. Vim conhecê-lo muitos anos depois com o nome de Dermeval Pontes, profissão alfaiate. Um filho dele era bem rebelde e tornou-se meu aluno tempos adiante. Eu aconselhava muito o Vitárcio por causa do gesto paterno do passado. Mas nunca contei a ele, Vitárcio e, por timidez, não relembrei isso ao Dermeval que era muito mais velho do que eu.
Vez em quando subo o serrote do Cruzeiro, sem companheiro algum. Solitário, devagar, degustando o passado sob as árvores maiores da capoeira que cinge o monte. Vou contando os degraus que fizeram para a via-sacra. Abandonados. O mato está seco. A flora desabitada. Apenas lagartixas e formigas cruzam o chão rachado. A folhagem se balança como saudação. Uma parada aqui outra acolá para sentir todo o prazer de uma solidão repleta de energia. Um olhar fugidio para baixo. Mais um passo em direção ao cimo. Finalmente o lajeiro, as mesmas macambiras, as mesmas urtigas, a quietude profunda e bem aqui, bem aqui mesmo onde essas duas lágrimas caíram, a mesma marca do PÉ DE JESUS.






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