quinta-feira, 29 de abril de 2010

SE MANDAREM ME BUSCAR

SE MANDAREM ME BUSCAR

(Clerisvaldo B. Chagas. 29.4.2010)
GOSTARIA QUE OS PROFESSORES INTERPRETASSEM ESSE TEXTO COM SEUS ALUNOS.

Montado na década de 50 o rapaz percorre a rua poeirenta do povoado. O peito caboclo emite um som nostálgico com assovio em acesso:

“Ô sanfoneiro
Moça mandou lhe chamar
Para tocar um baião no Ceará
Tu diz a ela que de pé em não vou lá
Eu só vou de avião se mandarem me buscar...”

É o eco notívago do forró de ontem. O zumbido caracolado na manhã de sol:

“Tu diz a ela que de pé eu não vou lá
Eu só vou de avião se mandarem me buscar...”

Os passos se perdem longe, lá na curva da extremidade... E o céu de tão puro azul iluminado, deixa escapar o voo do gavião ligeiro. Extenuam-se as sombras das casas velhas, procurando o chão. Retorna a rua solitária. A bela igreja de cal parece demarcar a ida. Da casa de farinha voam lavandeiras pelas janelas abertas de barro avermelhado. Por trás das casas “empretecidas”, compassos sutis de cacarejo. Curvas nos rastros fundos de carro de bois; tristeza de rolas brancas à sombra do coração-da-índia. O povoado vive. Modorra, cochila, dorme. Brilha um fio de prata na lagoa seca sob garranchos pendidos de arbustos marginais. Do galho negro da baraúna, o urubu observa as trilhas tortuosas de areia fina. E aquele canto? Aquele canto infantil sem força e cadenciado? É o canto expulso da escolinha que sopra os rachões da calçada pequena. Um débil esforço de futuro na sinfonia do distante, na ingenuidade pura, no débito de um destino sem. Quando a brisa chega, brinca de pinhão, contorna a terra e ergue o pó circulante. O tempo espaceja, tange o meio-dia, derrama dourado nas colinas. Passa o rebanho em fila por um. Dentes cavalares provocam ruídos nos aiós trançados. Losangos de palma verde compõem céleres os balaios de cipós; vão caindo sem piedade pelo gume avivado do facão. Ergue-se o homem em molambo, antes de cócoras na sua faina cotidiana. Animais galopantes trazem os bêbados da feira. Risos, gargalhadas, tomam o espaço da bodega receptiva que se firma na pinga boa. Cai o cuspo redondo pelo chão imundo. Misturam-se odores de pães frescos dos alforjes com o gasóleo de litros e barricas. Um maço de fósforos, um pacote de sal, uma réstia de alho roxo, pendurados no caderno fiador. Um tilintar de esporas, um deslizar macio de coxim, um longo galope interrompido. E os raios fúlgidos e dourados recriam no horizonte desenhos esquisitos. Ah! O menino debruçado na janela. Do tempo. Contempla o cenário de um dia inteiro no povoado. Desde as primeiras casas ao cemitério branco que em paz descansam.
O tempo molda a alma do futuro romancista. Lá vem o rapaz de novo. O da cantiga. Será ele mesmo ou somente a lembrança da manhã morando na rua! A lembrança que jamais irá embora, nem com odores de pão fresco nem com gasóleo de barricas. Parece que foi ontem:

“Tu diz a ela que de pé eu não vou lá
Eu só vou de avião SE MANDAREM ME BUSCAR”.









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