quarta-feira, 20 de maio de 2009

ZÉ GANCHO

ZÉ GANCHO
(Clerisvaldo B. Chagas. 20/05/2009)

Nos anos 50 havia em Santana do Ipanema, estado de Alagoas, inúmeros profissionais com artes peculiares. Destacavam-se barbeiros, sapateiros, alfaiates e funileiros (chamados por aqui de flandreleiros). O fladreleiro trabalhava com folhas de flandres principalmente no fabrico de calhas (bicas) para residências e casas comerciais. Numa época em que muito se precisava de luz elétrica, surgiam os candeeiros de flandres e de latas feitos nas tesouras afiadas e nas pancadas dos macetes. Ouviam-se de longe as compassadas batidas do martelo na bigorna dos ferreiros. Mas essas batidas eram diferentes, metálicas e irritantes se fossem de perto; saudosas se fossem de longe. Nas casas dos funileiros, não. As pancadas dos macetes eram fofas como se eles, os macetes, estivessem envolvidos em panos.
Entre os fladreleiros conheci a avó do escritor Oscar Silva, defronte à casa do meu pai. Josefina, já descrita aqui em outro artigo, possuía a voz do martelo dos ferreiros, porém, trabalhava com a lata e o flandres. Na mesma Rua Cleto Campelo (antes: do Sebo; depois: Antonio Tavares), também residia e trabalhava no mesmo ramo, o homem conhecido por Zé Gancho. “Zifina” falava quebrando metal e arrastando a voz. Zé Gancho arrastava a voz baixa numa preguiça dolente, dormideira... Sem fim. Morava a alguns metros da esquina do beco de acesso ao Ipanema, bem perto da Cadeia Velha.
Ora, eu não sabia que o artista não gostava de ser chamado Zé Gancho. Com seu nome próprio era uma ovelha. Com o apelido, um leão. Certa feita eu passava pelo beco quando vi lá em baixo várias pessoas olhando para o Ipanema e para o céu. Desci até o povo. O flandreleiro falava de cheia, descrevia chuva, dissertava o tempo. Com a minha precipitação fui chegando e ouvindo o homem dizer: “falam que ontem choveu foi muito por aí”. Eu, menino decepcionado com o assunto fui dando às costas e dizendo: “choveu b...”. Foi aí que senti a mansidão de Zé Gancho transformando-se em soldado de polícia. Tive medo que ele me conhecesse e fosse fuxicar a meu pai. Ah! Seu Manezinho não alisava.
Vejo com grande alegria o Ceará valorizando os homens experientes do Sertão; convidando-os para opinarem sobre o tempo juntamente com os cientistas; chamando-os de “profetas da seca”; levando a sério e divulgando suas previsões baseadas nos detalhes da Natureza. São as floradas do mandacaru, as pedras de sal, o dia de São José, o movimento das formigas e muitos outros sinais. Quando a ciência se alia à tradição, a força é maior, o êxito é certo e o ganho é dobrado.
Quando assisto na TV os encontros coerentes da Terra de Iracema, lembro das esperanças do flandreleiro querendo afastar a seca. E quando chega a notícia de chuva naquela região, eu me pergunto se aparece algum menino desinteressado para dizer: “choveu b...”.
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