terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

CARNAVAL DO LOBISOMEM

CARNAVAL DO LOBISOMEM

(Final)
(Clerisvaldo B. Chagas. 17.2.2010)

Quando Zé abriu os olhos, o povo passava para o baile do Tênis. Ele esfregou os dedos maculados nas pálpebras morenas, espreguiçou-se e tentou localizar-se. A cachaça ainda lhe dava dores de cabeça. Girava um pouco. Teve acanhamento de estar caído ali com o povo passando. Ainda lhe ressoava o alarido forte do bloco. Parecia que aqueles sons esquisitos haviam penetrado para sempre no mais íntimo dos seus miolos. Rodavam ali dentro matando-o aos poucos! “O urso preto vem da arca de Noé...”
Levantou-se. Bateu o sujo das roupas e lembrou-se de muitas coisas... Das palavras de Zefinha... Tombou; aprumou-se. Desceu a rua fazendo esforços para caminhar firme. Descansou um pouco defronte a Rádiotécnica do Petrônio; ralou-se na casa de peças de Genísio e desceu firme em diagonal. Na porta do hotel do centro deu uma topada e disse um palavrão impublicável; tirou um fino no cartaz do cinema e quase foi atropelado defronte o “Paraíso da Criança; pisou num degrau da Igreja Matriz e foi sair na “Côda Boutique”; deslizou o braço no travessão do cine e tirou de um fôlego só até a ponte nova. Achava-se cansado quando chegou ao posto de Zé Carlos, mas prosseguiu atravessando lépido a ponte da Floresta. Desviou para a esquerda e pensou: “Dessa vez não vou chegar a casa madrugada como estou acostumado”. Olhou o relógio: onze horas. Era muito cedo também. Passou por baixo de uma cerca de arame e sentou-se num galpão de olaria. Remoeu um ódio surdo, uma frustração desesperadora.

“O urso preto
Vem da arca de Noé...
Todo mundo já dizia
Que esse urso não saía
Esse urso anda na rua
Com prazer e alegria...”

Colocou as mãos na cabeça e pela primeira vez na vida disse: “Meu Deus!” Os olhos queriam dormir, todavia, a cabeça pedia para permanecer acordado. “Urso, João, Lobisomem, Zefinha, Bela, Maria, Maria Bela... E como é... O urso... Quando deu doze horas, deixou o seu abrigo e dirigiu-se para casa. Não estava mais bêbado; não queria estar bêbado. Caminhava aprumado. Abriu a porta trêmulo como um trigal ao vento. Não viu Maria Bela. Não estava na sala; não estava no quarto; nem na cozinha; também não estava no quintal, mas o portão achava-se aberto.
─ Labisomem! Ói o labisomem! – gritaram os curiosos numa certa distância, no escuro.
Conceição voltou para dentro. Mexeu na gaveta do guarda-louça e achou um revólver que havia trocado certa vez por meio tabuleiro de doce. Examinou-o. Estava carregado. Seis balas, Taurus. Saiu pelo portão como um possesso. Acostumou os olhos ao escuro. Parou. Localizou alguns ruídos a uns trinta metros de distância. Agachou-se e saiu engatinhando; dedo no gatilho. Então, diante de si apareceu um vulto enorme (mais ou menos do tamanho de João Baía) não tinha forma definida. Era muito escuro. Pareceram-lhe duas sombras numa só. Zé Conceição, o vendedor de quebra-queixo, não teve dúvidas. Disparou todas as balas do tambor e ainda ficou apertando o gatilho várias vezes, como um autômato.

É quarta-feira de cinzas. Acabou-se o carnaval. Zefinha está muito triste. Zé Conceição abre os olhos cansados como se tivesse vivendo um sonho. É o dia que entra pelas grades da prisão. Não existe mais lobisomem... Não existe mais João Baía... Não existe mais Maria Bela... Agora, somente uma prolongada ressonância nos tímpanos de alguém:

“E como foi...
E como é...
O urso preto...
Vem da arca de Noé...”







Link para essa postagem
http://clerisvaldobchagas.blogspot.com/2010/02/carnaval-do-lobisomem_16.html

CARNAVAL DO LOBISOMEM

CARNAVAL DO LOBISOMEM

(Clerisvaldo B. Chagas. 16.2.2010)
Conto lançado em 1979. Páginas 22, 23, 24 e 25. Final amanhã, quarta-feira de cinzas.

Caiu na rede, apagado. Só veio acordar, ainda zonzo, meia-noite, com um vozerio ao longe:
─ Ói o lobisomem! O lobisomem passou!
Espiou para dentro do quarto; Maria Bela não estava. A cabeça pesava-lhe como um saco de cimento. Levantou-se grunhindo e foi até o quintal. Não viu Maria. Pensou onde ela estaria à uma hora daquela. Será que tinha ido à casa da vizinha?A gritaria continuava nos arredores, nos quintais próximos. O lobisomem solto por aí. Que diabo estava fazendo a polícia que não dava uma batida para acabar logo com aquele bicho? Convenceu-se que de que ela estava mesmo era na casa da amiga, uma dona que vendia coco na feira. Lembrou-se de olhar o portão. Estava aberto. Fechou-o porquê o lobisomem poderia entrar por ali. Retornou à sala; meteu o caneco de “óleo Bem-te-vi” dentro do pote e bebeu um litro d’água. Depois caiu novamente na rede; entrou em letargia.
No terceiro dia de carnaval, Zé Conceição acordou cedinho. Viu Maria toda enrolada na cama, tomou um banho, vestiu roupa engomada e penteou-se no espelho de bolso. Iria brincar o carnaval como seu Nozinho: só, rua acima, rua abaixo. Ligou o rádio de Maria Bela, mas só havia forró àquela hora. Cremilda cantava:

“Eu não gosto
De forró que não tem briga
Forró que não tem briga
Num me diga que é forró
Eu não gosto de forró
Que não tem briga
Pelo meno uma intriga
Tem que haver num forró...”

Ele mesmo fez café e tomou com pão doce de dentro de uma lata. Depois saiu rua a fora. A primeira pessoa que encontrou na rua foi Ivanildo, consertador de fogão.
─ Fala Zé, aonde vai assim?
─ Pra rua, vamo?
─ Vou não, venho chegando agora.
─ De onte?!
─ De onte. Passei a noite toda brincando por aí.
─ Olhe Ivanildo, num visse falar num tá de lobisome, não?
─ Ouvi sim, mas eu já ando prevenido.
─ Vou pra rua, inté logo.
─ Inté. Vou drumir que tou bebo de sono.
Zé Conceição continuou e foi bater papo na frente das Casas GG. Deu uma tentação de ir à casa de Zefinha e ele desceu para lá.
Zefinha, sempre querendo conquistá-lo definitivamente, depois de muitos afagos, contou-lhe algo que o estarreceu. Deixou-o com voz embargada. Conceição, sem querer acreditar interrogou Zefinha duramente com o olhar. Ela insistiu na afirmativa:
─ Quem me contou foi Tonho de Tereza, que é muito amigo dele.
Zé Conceição afastou-se pensativo. Chocado. Não mais ouviu os fuxicos de Zefinha e subiu o Beco São Sebastião com as orelhas queimando, pegando fogo. Era cedo e nesse último dia de carnaval ele também começara cedo. Mas agora iria beber por outro motivo. Iniciou desta feita pelo Samburá, onde bebeu três doses puras de “Montilla”. Sentou-se em um dos bancos e viu o mundo querendo rodar. Ou era a sua cabeça que girava? Girava... Girava... Girava. Não era ainda pelo efeito da bebida, mas sim pelas revelações de Zefinha. Estava se sentindo mal. Mas não queria ir para casa agora. Não adiantaria. Saiu percorrendo a rua como um sonâmbulo. Sem sentir, bebeu mais e mais até que localizou o famoso bloco dos carregadores em frente ao Tribunal do Júri. Lá vinha a famigerada música do Urso misturando-se com ele, com o álcool, com seus problemas, com sua vida. E o mundo girando, girando... Gargalhadas, sons, urso preto, gira mundo, Maria Bela, gira, João Baía, gira mundo...
Conceição caiu no Calçamento
Link para essa postagem
http://clerisvaldobchagas.blogspot.com/2010/02/carnaval-do-lobisomem.html