CARNAVAL DO LOBISOMEM
(Final)
(Clerisvaldo B. Chagas. 17.2.2010)
Quando Zé abriu os olhos, o povo passava para o baile do Tênis. Ele esfregou os dedos maculados nas pálpebras morenas, espreguiçou-se e tentou localizar-se. A cachaça ainda lhe dava dores de cabeça. Girava um pouco. Teve acanhamento de estar caído ali com o povo passando. Ainda lhe ressoava o alarido forte do bloco. Parecia que aqueles sons esquisitos haviam penetrado para sempre no mais íntimo dos seus miolos. Rodavam ali dentro matando-o aos poucos! “O urso preto vem da arca de Noé...”
Levantou-se. Bateu o sujo das roupas e lembrou-se de muitas coisas... Das palavras de Zefinha... Tombou; aprumou-se. Desceu a rua fazendo esforços para caminhar firme. Descansou um pouco defronte a Rádiotécnica do Petrônio; ralou-se na casa de peças de Genísio e desceu firme em diagonal. Na porta do hotel do centro deu uma topada e disse um palavrão impublicável; tirou um fino no cartaz do cinema e quase foi atropelado defronte o “Paraíso da Criança; pisou num degrau da Igreja Matriz e foi sair na “Côda Boutique”; deslizou o braço no travessão do cine e tirou de um fôlego só até a ponte nova. Achava-se cansado quando chegou ao posto de Zé Carlos, mas prosseguiu atravessando lépido a ponte da Floresta. Desviou para a esquerda e pensou: “Dessa vez não vou chegar a casa madrugada como estou acostumado”. Olhou o relógio: onze horas. Era muito cedo também. Passou por baixo de uma cerca de arame e sentou-se num galpão de olaria. Remoeu um ódio surdo, uma frustração desesperadora.
“O urso preto
Vem da arca de Noé...
Todo mundo já dizia
Que esse urso não saía
Esse urso anda na rua
Com prazer e alegria...”
Colocou as mãos na cabeça e pela primeira vez na vida disse: “Meu Deus!” Os olhos queriam dormir, todavia, a cabeça pedia para permanecer acordado. “Urso, João, Lobisomem, Zefinha, Bela, Maria, Maria Bela... E como é... O urso... Quando deu doze horas, deixou o seu abrigo e dirigiu-se para casa. Não estava mais bêbado; não queria estar bêbado. Caminhava aprumado. Abriu a porta trêmulo como um trigal ao vento. Não viu Maria Bela. Não estava na sala; não estava no quarto; nem na cozinha; também não estava no quintal, mas o portão achava-se aberto.
─ Labisomem! Ói o labisomem! – gritaram os curiosos numa certa distância, no escuro.
Conceição voltou para dentro. Mexeu na gaveta do guarda-louça e achou um revólver que havia trocado certa vez por meio tabuleiro de doce. Examinou-o. Estava carregado. Seis balas, Taurus. Saiu pelo portão como um possesso. Acostumou os olhos ao escuro. Parou. Localizou alguns ruídos a uns trinta metros de distância. Agachou-se e saiu engatinhando; dedo no gatilho. Então, diante de si apareceu um vulto enorme (mais ou menos do tamanho de João Baía) não tinha forma definida. Era muito escuro. Pareceram-lhe duas sombras numa só. Zé Conceição, o vendedor de quebra-queixo, não teve dúvidas. Disparou todas as balas do tambor e ainda ficou apertando o gatilho várias vezes, como um autômato.
É quarta-feira de cinzas. Acabou-se o carnaval. Zefinha está muito triste. Zé Conceição abre os olhos cansados como se tivesse vivendo um sonho. É o dia que entra pelas grades da prisão. Não existe mais lobisomem... Não existe mais João Baía... Não existe mais Maria Bela... Agora, somente uma prolongada ressonância nos tímpanos de alguém:
“E como foi...
E como é...
O urso preto...
Vem da arca de Noé...”
Link para essa postagem
http://clerisvaldobchagas.blogspot.com/2010/02/carnaval-do-lobisomem_16.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário