BALAS NA AGULHA
(Clerisvaldo B. Chagas-7.7.2008)
Corria o ano de 1970. Seca braba no sertão nordestino, gado morrendo, fome campeando, bandeira da miséria hasteada.
Em Santana do Ipanema, estava como representante municipal, o Prefeito Henaldo Bulhões Barros que a todo custo procurava amenizar os efeitos terrificantes do ciclo de estiagem. Várias estradas já haviam sido construídas na região, havia água da adutora de Belo Monte, proporcionando assim um maior deslocamento do povo e um complemento d’água melhor de que em secas do passado. Mas a seca regional era devoradora e atacava principalmente o homem do campo, destruindo lavouras e animais, minguando o estoque regulador de comida caseira. Quanto mais alto sertão, pior era o tempo.
Na faixa entre o povoado Candunda e a Ribeira do Capiá, houve vários movimentos contra a seca. Uma família, tremendamente apertada diante da fome, cujo pai de família chamava-se Antonio Rodrigues, vulgo “Tonhe Véi” (Tonho Véio, Antonio Velho), costurou uma idéia. Antonio era um homem bem conhecido, trabalhador alugado e respeitadamente honesto. Vendo os filhos em tempo de serem engolidos pela fome, trouxe o jumento do cercado, passou-lhe a cilha e empurrou dois caçuás possantes na cangalha acostumada. Colocou o chapéu de palha na cabeça, encheu uma pistola de balas, chamou a esposa Maria e partiram de casa.
Ora, ali nas imediações, havia um sujeito (não queremos citar nomes) que mantinha um armazém sortido para vender ou explorar os filhos da seca que quase morriam à míngua pelos arredores. Nada de fiado. Qualquer alteração estava ali o gerente e seus capangas garantindo o êxito crescente dos negócios.
Ao chegar perto do armazém, Antonio Rodrigues foi logo dizendo para a mulher, referindo-se a pouco ou muito barulho: “— Fique escutando, Maria, se cair chuva fina, você fique; se ouvi trovoada você corra”. E a esposa do sertanejo ficou do lado de fora tomando conta do jegue e atenta aos acontecimentos. Antonio entrou deu bom dia e mandou botar uma cachaça. O gerente alegrou-se pensando que iria fazer um negócio grande.
— Êpa, Tonhe Véi, o que é que manda, meu amigo?
E o sertanejo simplesmente disse, emborcando a pinga, que viera fazer compras. E assim começou a pedir a mercadoria: tantos quilos de charque, tantos quilos de feijão, de arroz, de farinha, pacotes de bolachas, sal, açúcar, café e assim em diante, até completar uma carga completa que enchia os dois caçuás. Encerrando as compras, tomou mais outra bicada, ficou em ponto estratégico e, diante da euforia do gerente, mandou que ele somasse tudo e botasse na conta. Qual não foi a reação do homem! Fiado? Nem falasse nisso. Ali não sairia um só centavo fiado, ordem do patrão. Antonio Rodrigues sacou a pistola, rodou-a em forma de leque e disse:
— Quero todo mercadoria dentro dos meus caçuás, agora! Nunca errei um tiro. São nove balas, nove defuntos, quer ver, não me obedeça.
— Mas Tonhe Véi, não pode... Você sabe...
— Bote outra cachaça.
— Mas Tonhe Véi, você já bebeu demais...
— Vai botar essa peste, não! — e a tábua de passagem do balcão foi jogada com grande vigor, fazendo um barulho enorme.
— Não, Tonhe, tá certo, vou botar mais cachaça.
Para resumir, os capangas ainda foram obrigados a levar a mercadoria para os caçuás e o sertanejo partiu com a mulher estrada afora sem ser molestado em um dedo sequer.
Ora, tempos depois Antonio Rodrigues voltou ao armazém, pagou a conta completa, recebeu inúmeros elogios do gerente e passou a ser o melhor freguês do armazém. Provou que era um homem honesto desesperado diante das circunstâncias. Escapou da seca, da fome, da perseguição e fez brilhar sua dignidade de homem decente.
Trinta anos depois desse acontecimento, tive o prazer e a felicidade de conhecer Tonhe Véi, e tê-lo como empregado de extrema confiança. Um homem simples, analfabeto e sábio nas lições da vida.
Antes Tonhe Véi usou uma pistola para ser honesto. Hoje, o colarinho branco empunha uma caneta para ser bandido.
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