quinta-feira, 12 de julho de 2018

MATANDO BODE


MATANDO BODE
Clerisvaldo B. Chagas, 13 de julho de 2018
Escritor Símbolo do Sertão Alagoano
Crônica: 1.941
Feira de Santana, anos 60. (foto: livro 230)

Aos sábados, com o pouco dinheiro no bolso, o menino saía para gastá-lo na feira. Procurava broa, quebra-queixo com castanha ou amendoim, tijolo de jaca, de raiz de imbuzeiro... Descia pelo estreito e imundo Beco do Mercado de Carne construído pelo coronel Lucena Maranhão. Na outra esquina do beco ficava a Casa Vieira. Por trás do seu quintal o monturo cheio de mato ralo, trilhas, onde os homens urinavam e amarravam os cavalos em que vinham para a feira. Mas descobri que ali os matutos matavam bodes, rapidinhos, para suprir o Mercado de Carne ou às bancas espalhadas.
O cabrito era abatido na hora, com um macete de madeira, sem mais delongas, e pendurado ligeiro por uma das patas, numa trave rude, com corda de caroá. O matuto saía tirando o couro do animal, iniciando pela pata amarrada, numa rapidez de ladrão. Eu admirava aquela faquinha amolada que só a gota serena, retirando o couro sem um golpe errado, sequer.
Depois era passear na feira, vê os porcos engradados na Rua do Barulho, contemplar esteiras de caboclos, abanos, vassouras e chapéus de palha no início da Rua Tertuliano Nepomuceno ou ver e comprar besta com caçuás e boi de barro na feira das panelas. Ali, um cabra vendendo o “óleo do peixe-elétrico”, acolá um cordelista oferecendo e cantando folhetos; uma cega bonita tocando sanfona; o repentista Zéquinha Quelé balançando o ganzá; e, mais à frente, dois emboladores em desafio: “Viva a feira de Santana/Viva todo o pessoá/ Viva a feira de Santana/ Tu quer peito pra mamar?”.
Hoje em dia ficamos abismados com as ações que travam e roubam os direitos do povo brasileiro. Levam o dinheiro da merenda escolar; sucateiam o transporte dos estudantes; não concluem obras de relevo; não mantêm médicos nos postos de saúde;  Surrupiam verbas de hospitais; fraudam orçamento público e criam leis para abafar os gritos populares, dentre outras misérias que levam o nome de Estado de Direito.
E quando vamos passar a limpo o calendário vivido, temos a impressão de que o povo virou cabrito e vive pendurado na trave, amarrado de caroá, igualzinho aos bodes do monturo da Casa Vieira. O macete de pau e a peste da faca amolada de tirar o couro passaram das mãos do matuto para as garras dos políticos do Brasil.


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quarta-feira, 11 de julho de 2018

IPANEMA, GERSON E A BOLA


IPANEMA, GERSON E A BOLA
Clerisvaldo B. Chagas, 12 de julho de 2018
Escritor Símbolo do Sertão Alagoano
Crônica 1.940
 
Couraça. (Foto: Luciano Deppa).
Há muito falamos sobre o tema acima. Todavia, com a preocupação de se mostrar a bola da copa por dentro, nas redes sociais, voltamos ao título. As primeiras bolas utilizadas pelo nosso Ipanema, em Santana, era chamada de couraça. Era uma bola artesanal de couro com abertura costurada, após a colocação de câmara de ar. Era marrom, cor do próprio couro e, no mundo inteiro era assim. Em tempo de chuvas pesava que era um horror. Raríssimo era encontrar artesão para fazer uma couraça. A sua confecção era tão difícil quanto o alfaiate fazer uma batina. Raramente qualquer time tinha mais de duas couraças, o que atrasava em muito as partidas por diversas situações. Somente a partir dos anos 1950, as bolas no mundo começaram a melhora e a evolução até hoje.
Em Santana, conhecemos o Gerson Sapateiro, que diziam que ele jogara no time Ipanema. Como rapazote, víamos Gerson diante da sua tenda na minha Rua, Antônio Tavares. Moreno, alto e gordo. Tinha ótima clientela, mas estava sempre amargurado. Era casada com excelente senhora, parecem-no de nome Dalva ou semelhante, filha de Zé Cambão e Maria Cambão, que prestavam serviços à comunidade e amados por todos. Gerson era um cantor voz de ouro, verdadeiro uirapuru. Dezenas de pessoas pagariam seja lá quanto fosse para ouvir as melodias com o ex-Ipanema. Mas o sapateiro – sempre traumatizado com alguma coisa que só ele sabia – apenas cantava quando queria, assim mesmo durante o trabalho, quando não havia ninguém por perto. (Mário Nambu, único, que cantava as músicas de Augusto Calheiros, também agia assim).
Gerson morava vizinho a outro grande cantor santanense, conhecido como Cícero de Mariquinha (sua mãe). Gostávamos imensamente de todos. Foi uma honra enorme termos vividos no tempo do trio. Gerson, um dos nossos heróis, trabalhava sempre sem camisa. Mas como um adolescente ousaria indagar do cantor/sapateiro sobre seus desgostos! Cada sapato para conserto era uma esperança secreta de que melodia fugaz pudesse escapar da garganta do uirapuru.
Rua Antônio Tavares, rua repleta de heróis que ficaram no anonimato.



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