terça-feira, 17 de novembro de 2009

NEM SEI SE DELFIM SOUBE

NEM SEI SE DELFIM SOUBE
(Clerisvaldo B. Chagas. 18.11.2009)

Parece que existe na humanidade uma tendência natural de não querer assumir culpas. É em casa, no trabalho, no lazer, seja aonde for. A criança diz que a culpa foi do irmãozinho, o adulto se escora no camarada, o soldado fala que recebeu ordens. Se a tendência, então, é natural, ninguém deveria ser chamado de mentiroso. O que de fato existe por trás da negação do feito? A vergonha de ter fracassado? O medo do castigo? O prazer de acusar terceiros? Lá no paraíso mesmo, onde tudo teve início, Adão eximiu-se da desobediência, alegando ser culpa de Eva. Por sua vez, a primeira mulher falou que a verdadeira culpada era a serpente. Ninguém perguntou a serpente por que fez a tentação. Vê-se por aí que a célebre frase: “Eu mesmo não fui”, vem desde a criação do homem. E se a criança se defende, o jovem aponta para o lado, o adulto nega. Erros assumidos podem ser as coisas mais difíceis da vida. Imaginem a política: os de baixo condenando os de cima; os de cima acusando os de baixo.
Há muitos anos, nós, os poetas, conversávamos nos degraus da Matriz de Senhora Santa Ana, em Santana do Ipanema, Alagoas. Entre eles estava uma das maiores figuras do repente nordestino, Geraldo Amâncio. Geraldo contava muitas histórias de cantadores, principalmente do Ceará. Uma estrofe de um desses casos permaneceu na minha cabeça, mas não lembro o nome do autor e nem o do seu parceiro. A cantoria teria acontecido no tempo em que Delfim Neto era ministro. A inflação estava sem freios e o Brasil passava uma época muito difícil. Todos os setores sociais sofriam com as mazelas da Economia. Pois bem, o povo brasileiro resolveu culpar o ministro tanto pela inflação quanto pelos outros males do País. Até briga de vizinhos seria culpa de Neto. O ódio era grande e voltado para o ministério. Baseado nisso ─ segundo meu amigo Geraldo Amâncio ─ um homem aproximou-se da peleja lá em terras cearenses e, revoltado com a situação pediu um tema trava-língua em décima: “Se não der fim a Delfim/Delfim dá fim à nação". Como o mote também afetava os cantadores, os dois se engalfinharam com versos bonitos, até que um deles deixou para a posteridade:

“Tamo na segunda etapa
Do tempo do realismo
Vai chegando o comunismo
Desse aí ninguém escapa
Atiraram até no papa
Mas em Delfim Neto não
Que falta faz Lampião
Pra atirar em cabra ruim
Se não der fim a Delfim
Delfim dá fim à nação”

NEM SEI SE DELFIM SOUBE.


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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

FORÇA DO MOURÃO

FORÇA DO MOURÃO
(Clerisvaldo B. Chagas. 17.11.2009)

Quem aprecia uma peleja nordestina, conhece os diversos gêneros de estrofes existentes: sextilhas, galope beira-mar, quadrão, mourão, mourão perguntado, martelo agalopado, martelo alagoano, Brasil caboco, gabinete, décimas... São em torno de quarenta gêneros. O básico de qualquer cantoria é a sextilha. A dupla de repentistas pode passar uma noite cantando somente sextilhas, pois com elas se canta qualquer assunto; apenas muda a musicalidade em canta intervalo. Cada pedaço da cantoria é chamado baionada. Quando os cantadores querem ou o povo pede, os repentistas podem cantar vários gêneros após as sextilhas e depois voltar para elas. O gênero mais nobre, em minha opinião, é o martelo agalopado, chamado assim porque imita martelada como o galope de cavalo. O tema ou mote, se alguém pede, é cantado em décimas ou em martelo agalopado que tem mais sílabas, porém, com os mesmos dez versos. O mourão é composto de uma estrofe de sete versos, separados em dois mais dois mais três. O primeiro cantador canta dois versos (duas linhas); o segundo cantador responde com mais dois; o primeiro repentista rebate com os três versos finais. Abaixo iremos dar um exemplo de martelo agalopado e um de mourão.
Zé de Almeida é poeta-repentista santanense e muito conhecido no Nordeste. Ultimamente Almeida vem se dedicando mais ao ramo musical das vaquejadas, fazendo dupla com parceiros também famosos. Certa feita achei tanta poesia em um martelo agalopado feito por ele que imortalizei a estrofe. Está no meu romance Defunto Perfumado à página 8:

“O meu verso já tem se comparado
Com o mel da abelha jandaíra
Com o perfume da flor da macambira
Com o campo florido perfumado
Com as flores que cobrem todo o prado
Com o sol amarelo cor de gema
Com o canto feliz da seriema
Com o grito saudoso da graúna
Com a casca de pau da baraúna
E o verdume da folha da jurema”

Pois bem, Zé de Almeida e seu parceiro pelejavam na cidade alagoana de Maravilha, Sertão de Alagoas. Estavam ambos em uma residência, quando um ouvinte pediu um mourão. Almeida iniciou mais ou menos assim:

O povo pode pedir
Que a gente canta na hora

O parceiro respondeu:

Ninguém vai me impedir
De tocar minha sonora

No momento que Almeida ia concluir o mourão, um homem muito conhecido na cidade, passando por fora espichou o pescoço para dentro da casa (pela janela) e gritou: “Calem a boca dois cornos!” Zé de Almeida desviou o pensamento e respondeu ao parceiro, ao povo e ao intruso:

“Nessa agora eu me concentro
Dois cornos cantando dentro
E um corno gritando fora”

No final tudo terminou em gargalhadas com as brincadeiras do comerciante Leusínger. Essa é a FORÇA DO MOURÃO.





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