ESQUINA DO PECADO (Clerisvaldo B. Chagas. 26.3.2010) Minha primeira experiência coletiva intelectual em discussão foi em Santana do Ipanem...

ESQUINA DO PECADO

ESQUINA DO PECADO

(Clerisvaldo B. Chagas. 26.3.2010)

Minha primeira experiência coletiva intelectual em discussão foi em Santana do Ipanema. Entre quinze e dezessete anos, travei conhecimento com o “Negão Zé Lima” que morava com a tia no “Hotel Central”. Era um prazer muito grande encontrar-me com pessoa tão inteligente e atualizada. Zé Lima, moreno claro e franzino, tinha uma capacidade incrível de criar piadas curtas e dá respostas rápidas. O local predileto das nossas conversas era a esquina do hotel, principalmente à noite e aos domingos. Conversávamos principalmente sobre História e Geopolítica. Revirávamos o mundo inteiro onde entravam a Segunda Guerra, tipos de armas, principais combates, Vietnã e muito mais além de enveredarmos pelo campo das novas tecnologias. Zé Lima andava de amigação lá na baixada do “gamba”, cuja mulher era doida por ele. Mas o Negão era apaixonadíssimo por Zilma e não parava em todas as ocasiões de elogiar “seus olhos verdes e seu rosto meigo”. Certa vez fomos a Pão de Açúcar contemplar a procissão dos navegantes e ele não parava de falar sobre Zilma, lá em cima, no cristo, de onde víamos a bela paisagem das embarcações nas águas do São Francisco.
Depois chegou o Fernando Campos e integrou-se aos encontros. Jovem de família tradicional do Bairro Monumento surgia bem penteado e bem vestido, sem nunca largar um cigarro que parecia fazer parte dele. Descobri que era também inteligente e mostrava leves ideias socialistas. Em seguida surgiu o Arlei, gago, sabido e também com pensamentos semelhantes aos de Fernando. Alguns outros rapazes também compareciam, mas eram coadjuvantes nas palestras do quarteto.
Aos domingos, as mulheres passavam para a missa das sete e das dezenove horas e não paravam de pedir licença entre a parede da casa comercial e o poste onde se amarravam os cartazes do cinema e dos jogos de futebol. Ficávamos ali, escorados na parede ou no poste. Como o filme “Esquina do Pecado” estava em voga, dei o apelido do nome do filme àquela esquina que pegou rapidamente. Não falávamos mal das mulheres de Santana como sempre acontecia no “Senadinho” pesado de adultos na porta da igreja-monumento de Nossa Senhora da Assunção. Já foi dito acima qual era o nosso tema. Entretanto, como o nome do lugar era “Esquina do Pecado”, parece que incomodava as mulheres que por ali transitavam em direção à Igreja Matriz de Senhora Santa Ana. Um dia chegou à notícia de que o novo delegado havia recebido uma queixa sobre a esquina e iria visitá-la para recolher os componentes. Verdade ou mentira, por via das dúvidas, resolvemos abdicar. A roda do intelecto nunca mais se reunião ali. Depois Zé Lima foi trabalhar em Arapiraca (onde teve a vida ceifada em acidente); eu fui estudar na capital e perdi contatos com Arlei e Fernando. Soube recentemente que Arlei trabalha em Delmiro Gouveia (AL) e, Fernando, não sei. Mas foi com grata surpresa que o redescobri através da Internet, usando as letras que saem daquela cabeça da ESQUINA DO PECADO.
• Atualmente Zilma trabalha na Escola Helena Braga.
• “Gamba” = baixo meretrício.
• Pelo menos a “Esquina do Pecado” produziu dois escritores santanenses.

RIACHO DO NAVIO (Clerisvaldo B. Chagas. 25.3.2010) No semi-árido nordestino os rios temporários são todos semelhantes, exercem as mesmas ...

RIACHO DO NAVIO

RIACHO DO NAVIO

(Clerisvaldo B. Chagas. 25.3.2010)

No semi-árido nordestino os rios temporários são todos semelhantes, exercem as mesmas serventias e variam em largura, extensão e fama. Após as enchentes periódicas, as correntes somem, restando poços rasos ou profundos, em locais arenosos ou em pedregulhos respeitáveis. Em Alagoas destacam-se as três ribeiras Ipanema, Capiá e Traipu, seguidas de outros menores como Gravatá, João Gomes, Dois Riachos, Riacho Grande, Camoxinga, Canapi, Desumano e Jacaré. A pesca incessante nos tempos de estiagem, não deixa sequer um carito (peixe pequenino e vil) para remédio.
Havia uma tradição em Santana do Ipanema quando, anualmente, um grupo de homens partia para uma pesca no riacho do Navio, zona sertaneja de Pernambuco. Participei da prática quase no final dessas alegres e decantadas excursões. Convidado que fui, parti em cima de uma camioneta lotada de mantimentos, cuja despesa era dividida por todos. A diferença geral iniciava ao entrarmos em Pernambuco cortando caminho por uma paisagem inóspita, cujo areal parecia não ter fim. A camioneta pesada e com boa velocidade, ia engolindo léguas e léguas sobre trilhos de carro de bois, ladeados por arbustos pelados e cinzentos. Tive impacto fortíssimo com uma visão real naquele mundo de deserto: um imenso açude de água verde que se perdia no horizonte como verdadeira miragem saariana. Bem ali pertinho estava o riacho do Navio, cantado nacionalmente pelo sanfoneiro Luiz Gonzaga. No local de chegada, no bojo da sequidão, um poço longo mantinha a água presa cercada de pedras lisas e de várias frondosas craibeiras que protegiam as barracas dos visitantes.
O riacho do Navio, afluente do Pajeú, nasce entre os municípios de Custódia e Betânia e percorre 132,24 km até o seu coletor. Tinha certa aparência do riacho santanense Gravatá.
Três dias de pesca longe de casa no mais engraçado lazer que eu conheci. Somente homens no acampamento em atividades diversas. Uns pescavam com tarrafas, outros caçavam, muitos jogavam baralho e outros ainda divertiam-se em farras movidas a violão, aguardente e uísque. O palavrão era destaque e corria solto na boca de predestinados. Entre a turma, um ou dois eram alvos da maior parte da brincadeira como o senhor Sebastião Gonçalo, vulgo Sebastião Labirinto. Surpreendeu-me a quantidade de mantas de carne-de-sol espalhadas por cima das pedras. Frutas à vontade. Após as horas normais das refeições, não havia regras para lanches. Quem quisesse, a qualquer hora do dia ou da noite, cortava, espetava e assava sua carne nas fogueiras permanentes. Mexia nos pães, nas frutas, na bebida, tudo de acordo com o desejo. Nenhuma restrição. Quando alguns adormeciam, tinham os punhos das redes cortados. Bagunceiros ralavam latas nas pedras e nessas horas não tinha quem dormisse. Com a garganta inflamada desde o início, não tive plenitude nas brincadeiras.
Fui e voltei com o técnico João Galego. Alguns anos após a minha ida, o movimento foi escasseando, devido o desaparecimento dos mais antigos. A tradição teve fim quando um santanense tentou derrubar a craibeira mais antiga e quase foi trucidado pelos nativos. Fui à outra pesca na volta do Moxotó com os senhores José Maria Amorim (professor), José Gomes, vulgo “Cara Veia (técnico), Sebastião “Poara” (aposentado), Juca “Alfaiate”, Osman (sargento), Manoel da “Guanabara” (comerciante), mas foi diferente e a moda não pegou. Fica assim registrada a tradição e o fim, em Santana do Ipanema, da pesca no RIACHO DO NAVIO.