sexta-feira, 4 de julho de 2008

Resgatando (1)



RESGATANDO (1)
(Clerisvaldo B. Chagas-20.6.2008)

Hélio Cabral, “O Prefeito Cultura”, gênio forte e traje elegante, havia fundado o museu, a biblioteca e promovido a primeira feira de livros de Santana do Ipanema, Alagoas. Nas faldas do serrote do Pelado, esse chefe do Executivo ainda construiu a pracinha das Coordenadas bem defronte ao antigo Posto Esso, terreno atualmente ocupado pelo prédio da Caixa Econômica Federal. Pensando em melhor informar ao povo do Município, àquele dinâmico prefeito criou na sua gestão 1956-60, uma rede de comunicação através de sistema de alto-falantes espalhados na cidade. Pelo menos um desses alto-falantes ficava em um poste de madeira na entrada do beco defronte a atual escola Ormindo Barros. Outro anunciava acima de uma das janelas do “sobrado do meio da rua”, virado para a Praça Manoel Rodrigues da Rocha. Na Rua e Bairro São Pedro, parte de cima, havia novo poste de madeira com alto-falante, bem defronte a fabriqueta de calçados do Senhor José Elias. A luz elétrica da urbe dependia de um motor alemão que funcionava na Avenida Nossa Senhora de Fátima, no prédio onde atualmente trabalha a Câmara de Vereadores Tácio Chagas Duarte.
Havia um doido em Santana, chamado Justino. Diziam algumas pessoas que o maluco fora sapateiro e ótimo jogador de futebol do Ipanema. Justino era alto, rijo, usava cabelos compridos e barba negra. Morava num caminho secundário que dava para o açude do Bode, hoje, quase defronte a UNEAL. Justino andava resmungando e representava perigo dependente do momento. O maluco perambulava com freqüência pelo trajeto entre sua casa e a cidade através de um corredor margeado por aveloz. Nesse trajeto, Justino chegava a um largo, após o corredor, passando defronte a casa de Alfredo Forte. (Alfredo era um velho mal humorado e esquisito que tinha uma casa na Rua Antonio Tavares, também esquisita, onde exercia a profissão de sapateiro. Morava com duas filhas que não saíam de casa e raramente eram vistas). No largo, do outro lado, defronte, morava o Lulu Félix numa casa de alpendre diante de um pé de mulungu. (Félix, sempre de paletó, baixinho e sério, era contador de casos. No bom sentido, era considerado personagem “folclórico” e o maior mentiroso de Santana). Fora aquelas duas casas, perto da entrada da Maniçoba, tudo era vazio. Justino gostava de descansar na varanda da casa de Lulu Félix, num banco de pelar porco. Quando alguém da cidade gritava pelo doido chamando-o Maceió, Justino ficava violento e era capaz de tudo.
Uma criança deixava diariamente a Rua Antonio Tavares e seguia em direção ao Bairro São Pedro. Chapéu de palha estilo caubói, barbicacho passado sob o queixo, disfarçava as primeiras angústias ouvindo as músicas do poste da casa de José Elias: Nelson Gonçalves, Luís Gonzaga, Ivon Curi mais os anúncios da Prefeitura e as propagandas que havia: a, e i, o, urso, Urso, o melhor calçado da praça... Às vezes o garoto parava no boteco de Seu Ermírio, situado na esquina do último beco da Rua São Pedro que dava para o rio Ipanema. Pedia um refresco cujo valor era quinhentos réis. Raramente a criança dispunha de destões para pedir um copo de canelinha, considerado refresco mais saboroso. Dali em diante tinha início uma perspectiva doentia no seu trajeto. Teria que arrebanhar o gado no cercado do pai e que ficava no final do corredor de aveloz, trazê-lo, descer pelo beco citado até o Ipanema e dar de beber. Depois, teria que conduzir o rebanho até o final da Rua Prof. Enéas (antiga Rua José Quirino), onde o seu pai possuía um excelente cercado. Ali o menino, pinicava palma, conduzia água para mudas de coqueiros, cortava abóboras para os porcos.
Mal o futuro escritor deixava o boteco de Seu Ermírio, descendo rumo a Maniçoba, passando pelo terreno de Otávio “Magro” (Otávio da salgadeira), o medo de Justino começava sua ronda. “Será que o louco estava no trajeto?” Se Justino estivesse na casa de Lulu Félix, não encontraria com ele no corredor de aveloz. Caso não estivesse, o receio, a agonia, o desespero aterrador tomariam conta do seu peito repleto de inocência. Cada passo na estrada de aveloz representava uma punhalada profunda. Olhos atentos à curva do caminho, aos fios de arame da cerca de Alfredo Forte, a um possível buraco de fuga diante de uma simples, lépida, repentina aparição do doido barbudo de Santana. Foram inúmeras as vezes que o meu coraçãozinho ameaçou saltar do peito e sair correndo daquela coisa horrorosa chamada Justino.
Acho que todo escritor tem um Justino na vida.

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quinta-feira, 3 de julho de 2008

ODE AO RIO IPANEMA


ODE AO RIO IPANEMA
(Clerisvaldo B. Chagas-2.10.2007) Especial

Era um imenso e formidável lastro. Um paizão de 220 km coleantes entre Pernambuco e Alagoas.
Os desbravadores logo perceberam que o rio Ipanema — mesmo temporário — representava palpitações de vida. Uma veia grossa que irrigava todo o corpo sertanejo. E o pai amigo, generoso e bom, logo presenteou o semi-árido com uma cidade morena, dourada, plena de Sol e ornada de colinas, chamada Santana.
As águas vivas sobre areias, as águas serenas sob as areias, as agitações supremas de cima, as quietudes divinais de baixo, o tempero salobro da ribeira, mataram a sede da “Rainha do Sertão”. E o rio gritou bem alto: — “Façam as casas, eu dou a areia; fabriquem os tijolos, eu cedo o barro verde; definam seus tetos, eu contribuo com argila; lembrem dos alicerces, eu tenho pedras milenares; tragam os animais, usem meus pastos; provem dos meus deliciosos peixes; e... Quando estiverem cansados do trabalho dignificante, durmam sobre colchões e descansem com os travesseiros dos meus juncais.
E as espumas desciam das roupas sob lindos cânticos das lavadeiras caboclas; os dorsos robustecidos submergiam nas águas turvas; e o sopro da leve brisa amenizava o suor negro dos corpos noturnos e nus.
Grita Santana, teu nascimento! Berra Santana, tua expansão! Enfeita teus aromáticos cabelos com a flor da craibeira. Embala teu berço com o sussurro do Cruzeiro, com a lenda da caipora, com o doce murmúrio dos regatos em mês de julho.
Silêncio que esvoaça o gavião; câmara natural que filma e comanda os céus de borboletas e bem-te-vis. Olhos mágicos que perscrutam o Panema, e a flora, e a fauna, e o relevo privilegiado do lugar. Sentinela altivo das paixões, dos amores... Dos queixumes do povo santanense.
Deus fez o Ipanema, o Ipanema fez Santana. E Santana observa seu criador pelas frestas das portas, pelos rachões das janelas, pelas varandas de aroeiras... Pelo mormaço das tardes preguiçosas ou pela íris da mulata no cio.
Erga-se meu herói sertanejo, que o astro-rei traz a luz no oriente; que os matizes do azul marcham no firmamento. Ecoaram as trombetas dos pardais.
Breve, breve, minha cidade estará de pé: bênção, meu Panema. Deus
nos ilumine neste novo dia.
Para os escritores Marcello Ricardo de Almeida, Antonio Machado, Carlindo de Lira Pereira, Aleixo Leite Filho e meu amigo Gilson Farias. Aos escritores de Blumenau.

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