terça-feira, 24 de dezembro de 2019

O MENDIGO ESPERTO


O MENDIGO ESPERTO
Clerisvaldo B. Chagas, 24 de dezembro de 2019
Escritor Símbolo do Sertão Alagoano
Crônica: 2.234
O MENDIGO (FOTO: B. CHAGAS).

Não havia opção. Fiquei no pé do muro naquela nesga de sombra, aguardando a abertura do consultório. O ponteiro resfolegava para o meio-dia, numa temperatura de queimar tijolo. Junto ao cadeirante, sem uma perna, mais observador do que linguarudo, era mesmo que não ter ninguém para conversar, em quase uma hora de espera. Como eu sempre via o sujeito no mesmo lugar pensei tratar-se de um vigia. No fiapo de sombra só nós dois e o vazio de voz. Aproveitei o limão para fazer a limonada do dito popular. Observei que o cabra não era vigia de coisa nenhuma, mas um pedinte viciado e esperto com lugar cativo.  Devia fazer o ponto há anos, pois conhecia todos os que moravam na viela e os trabalhadores das imediações.
Quando não falavam com ele, o próprio se adiantava no cumprimento e assim ia pingando moedas e papel na sua mão. Passou a madama, o empregado, o catador de ferro, as moças... E de repente um do seu nível, suado, celular à mão, veio trocá-lo pelo aparelho similar do cadeirante. Conversas, vantagens, torna, cada figura querendo levar vantagem sobre a outra. A troca chegou muito perto, mas ficou para a próxima rodada. Ao passar do meio-dia o cadeirante puxou o aparelho e telefonou para um familiar mandado que providenciasse o seu almoço. Deu o lugar onde se encontrava seu cartão de crédito e fez outras recomendações. Hum!... Que chique! Por nada nesse mundo ele abandonaria o posto para almoçar.
Macaco velho, escolado, conhecia de sobra o tempo do lucro e do prejuízo. Enquanto aguardava a próxima vítima, perdão, novo cliente, balançava com as duas mãos as moedas que tiniam bonito perto dos ouvidos. Perguntei para firmar certeza nos futuros dizeres, como seria o nome da viela sem placa indicativa. “Viela Três Marias”, respondeu sem muito boa vontade sobre a Travessa Itatiaia. “O senhor conhece o filho do cangaceiro Corisco?” Indaguei. “Sim, senhor, mora lá no fundo da rua, é o Dr. Silvio Bulhões”. Calou-se.
Defronte o consultório abriu. Entrei e fui atendido. Ao retornar à rua continuava lá a estátua grudada do cadeirante. Não julguei nada e nem cabia julgar coisa alguma. Simplesmente rodeei o homem e zás! Uma foto de costas para a próxima crônica. Para que filosofar a vida? Respirei fundo... E fui.




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