sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

EU VI OS PEDAÇOS DE LAMPIÃO



EU VI OS PEDAÇOS DE LAMPIÃO
Clerisvaldo B. Chagas, 1o de fevereiro de 2019
Escritor Símbolo do Sertão Alagoano
Crônica: 2.052

     Três ou quatro dias após a remessa das cabeças para Maceió, chegava a Santana uma caravana da Faculdade de Direito do Recife, composta dos acadêmicos Alfredo Pessoa de Lima, Haroldo Melo, Décio de Souza Valença, Elísio Caribé, Plinio de Souza e Wandnkolk Wanderley, todos em excursão e desejando ir diretamente a Angicos.
     Coincidiu que estavam chegando notícias de que os abutres (urubus) viviam sobrevoando o local de combate, sinal de que os corpos não haviam sido bem sepultados.
     O Tenente-Coronel Lucena resolveu então formar uma caravana com os acadêmicos e me disse que eu teria de acompanhá-los, menos  como sargento do Batalhão, do que como correspondente do Jornal de Alagoas. Partimos, então para Angicos no dia 7 de agosto – (‘O Jornal nos Municípios’, Jornal de Alagoas de 18.8.38).
     Com a chegada dos acadêmicos do Recife, tivemos de ir com eles a Angicos, local do combate, lá sepultar os corpos deixados à toa. Encontramo-los já meio ressecados, amarelecidos, a pele agarrada no osso como se a carne houvesse fugido. Já não tinham pelos e era difícil a identificação. À vista daqueles, em plena caatinga, o acadêmico Alfredo Pessoa fez um discurso capaz de comover até mocós e preás que andassem por ali. E só então tive uma pequena ideia da atrocidade da decapitação. Um corpo sem cabeça, onze corpos sem cabeça e o discurso de Pessoa: que coisa de arrepiar! (FRUTA DE PALMA, 168).
     Na realidade os corpos não haviam sido sepultados. Ficaram ali mesmo no leito do córrego, cheio de pedregulho. Amontoado os onze, a tropa havia simplesmente feito um montão de pedras por cima. Além de ser difícil cavar sepulturas ali, a gana de Bezerra e seus comandados pelos troféus dos cangaceiros lhes havia retirado todo o restinho de senso humano que possuíssem.
     Ficamos ali quase um meio dia, a cavar uma vala comum no mesmo local, pois não havia condições de conduzir aqueles pedaços de gente para parte alguma fora do córrego.
     O célebre coiteiro Pedro Cândido era integrante da Caravana e, além de nos descrever as principais fases do combate que ele engendrara, mostrou-nos o corpo de Lampião, da mesma forma identificado por três ou quatro pessoas que integravam a caravana e que também conheciam detalhes físicos do Rei do Cangaço.
     Se não foi a única (e não foi), foi uma das poucas vezes em que observei  emoções no rosto do Tenente-Coronel Lucena: ao ouvir o discurso do acadêmico, encarando os pedaços de Lampião. (...).

(FRISOS NOSSOS)
Extraído do livro:
CHAGAS, Clerisvaldo B. & FAUSTO, Marcello. Lampião em Alagoas. Maceió, Grafmarques, 2012. Págs. 421-423.

                                                                                                                  

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