MORDENDO A BATATA Clerisvaldo B. Chagas, 29 de maio de 2018 Escritor Símbolo do Sertão Alagoano Crônica 1.911 PITUS. (COZINHA C...

MORDENDO A BATATA


MORDENDO A BATATA
Clerisvaldo B. Chagas, 29 de maio de 2018
Escritor Símbolo do Sertão Alagoano
Crônica 1.911

PITUS. (COZINHA CAIÇARA).
Quando o dia queria morrer, acenderam uma fogueira. Mesmo sendo verão, começou a chegar um vento frio que se foi tornando cada vez mais gelado e, eu que sou friorento, não mais aguentei a situação e fugi. Fui refugiar-me dentro e no fundo da barraca de lona preta, armada pelos pescadores. Durante o dia havíamos subido com eles de Belo Monte até ali ao sítio Telha. Naquele lugar deslumbrante e terrível, acampamos no leito seco do rio Ipanema, no lado de baixo das temíveis corredeiras. A proposta era passar uma noite pescando pitu, camarão e peixe, coisa que havia sido feita pelo dia. Após a pesca de covos, houve pirão de peixe e bom descanso. Eu, mais dois amigos e cerca de três pescadores do São Francisco, queríamos apenas um aventura farrista.
Um garrafão de cachaça de cabeça levada por nós, ao invés de animar, acabou a brincadeira. Os meninos de Belo Monte entraram abaixadinhos no “caldo de cana” a que não estavam acostumados. Eu não conseguia dominar o frio no fundo da barraca e imaginava uma cheia repentina naquele cânion que nem a alma escaparia. De repente os pescadores se desentenderam motivados pela “marvada”, rolou confusão e pega-pega, sendo preciso corajosa intervenção dos amigos para acalmar os ânimos. Quando a poeira baixou, os caboclos ainda continuaram verificando os covos, catando os pitus nas armadilhas, produzindo na fogueira os petiscos para as demais rodadas.
Infelizmente aquela noite não era eterna e deu tempo suficiente para me arrepender da empreitada. Mas como saberia da brusca amplitude térmica do lugar? Acho que não preguei o olho, ansioso pela barra do dia. E quando finalmente a luz solar mostrou a face, fui ver o campo de batalha. Entre mortos e feridos escaparam todos do frio, da arenga e da cachaça de cabeça. Estavam estirados pelo areal e pelas enormes pedras das corredeiras. Mais tarde juntamos tudo e partimos para Belo Monte.
Nunca mais quis saber de aventura noturna que pudesse me trazer prejuízo. Os camaradas da pesca voltaram todos com a cara de burro depois da fuga. Nem sei dizer se os seus dentes estavam sadios após as dentadas na cana, mas, cachaça de cabeça, “véi”, quem quiser que vá comprá-la na casa das “mile peste!”, tenho dito.

JUMENTOS, BURROS E GASOLINA Clerisvaldo B. Chagas, 28 de maio de 2018 Escritor Símbolo do Sertão Alagoano Crônica 1.910 Seu Ma...

JUMENTOS, BURROS E GASOLINA


JUMENTOS, BURROS E GASOLINA
Clerisvaldo B. Chagas, 28 de maio de 2018
Escritor Símbolo do Sertão Alagoano
Crônica 1.910

Seu Marinho era poderoso comerciante de secos e molhados. Negociava no “prédio do meio da rua”, onde seu armazém tinha de tudo, desde a ximbra colorida ao arame farpado e querosene. Viera do campo, após uma passagem de Lampião pela sua propriedade. Possuía fazendas e terrenos. E eu como rapazinho, ainda, sonhava um dia comprar a ele a casa e aquelas terras vizinhas à olaria de seu Piduca. Namorava sempre a casa modesta à margem do rio Ipanema, vista da residência de meus pais. Mas seu Marinho também possuía outro terreno na colina, hoje perto do posto de saúde do Bairro Floresta. E nas minhas andanças para o curso de Admissão na Ponte Padre Bulhões, sempre admirava aquela casa de alpendre. “Ah, se um dia pudesse comprar uma das duas!”.
Virei adulto e ouvia dos outros que Seu Marinho não vendia nada do que possuía, apenas os produtos do armazém. “Não me desfaço de nada, nem de um jumento; amanhã posso precisar”, dizia ele. Virei fiel desistente de ambas as coisas. E de fato, alguns bens do comerciante somente foram vendidos após a sua partida.
E como seu Marinho estava certo, atualmente precisamos de cavalos, burros, jumentos e carros de boi, para transportar – que ironia! – gasolina, querosene, leite, mulher para a maternidade, menino para a escola... E tudo, enfim. O boi, o jegue, o burro, o carro de boi, nunca obstruíram estradas e nem entraram em greve. Bichinhos! E agora, comadre, o que fazer com o trem, com o carro de luxo, com o iate, o aviãozinho progressista? E o “babau” que andava perambulando pelas rodovias, sem valer “um conto”, virou peso de ouro para transportar o que o “caminhãozão” nesta greve pai d’égua não carrega: são as coisas da fazenda, o estudante, o leite e o pão.
Sem combustível para ir ao trabalho, botei um bom dinheiro num burro movido a óleo, não o óleo diesel, mas óleo de milho mastigado, querido leitor.
É a greve, irmão, que veio para sentir o pensamento tortuoso do brasileiro moderno. Aí vamos retornando aos transportes antigos dos nossos avós; aqueles que nós já os tínhamos aposentado, menos os de Seu Marinho, é claro, kkkkkkk!


ZÉ CHAGAS E OS CAIXÕES DE DEFUNTO Clerisvaldo B. Chagas, 25 de maio de 2018 Escritor Símbolo do Sertão Alagoano Crônica 1.909 CAR...

ZÉ CHAGAS E OS CAIXÕES DE DEFUNTO


ZÉ CHAGAS E OS CAIXÕES DE DEFUNTO
Clerisvaldo B. Chagas, 25 de maio de 2018
Escritor Símbolo do Sertão Alagoano
Crônica 1.909
CARTAS. (IMAGEM: DOMÍNIO PÚBLICO).
Já abordamos este assunto. Animando as cidades do interior, nunca faltam alguns gaiatos nas comunidades. Em Santana do Ipanema, o individuo Zé Chagas alegrava o ambiente quando chegava trazendo sua verve para brincadeiras. E se tivesse tido antes de falecer, a ideia de andar com um pajem para anotar os seus feitos, por certo teria publicado um livro humorístico de muitas e muitas páginas. Explorava casas de jogatina e, por ter um gogó acentuado, parecia um urubu.
 Foi lá no Beco de São Sebastião, na casa da esquina, cujo prédio já tinha sido muitas coisas e naquele momento abrigava o baralho. Nós, os meninos, brincávamos zoadentos sobre uma janela com meia tala, numa noite de festa de Senhora Santa Ana, a padroeira. Fui um dos atingidos por um balde d’água jogado pela janela. Havia sido jogado por Zé Chagas, o comandante da casa.
Já rapaz feito, vi sentado à porta fechada da nossa loja, dois negros altos conversando baixo: Filemon, ex-cangaceiro e Zé Preto, o manganheiro que construiu um oratório na croa da pedra do sapo, no rio Ipanema. Para todos os mortais, nada. Mas para Zé Chagas que vai passando, lembra um pássaro preto do sertão e exclama com toda maledicência: “Espia onde está um casal de anum”, e aponta para ambos.
E quando um amigo indaga a outro se acha Zé Chagas muito feio, o cabra responde: “Eu só não acho porque já me acostumei com ele”.
Assim chegou a cartomante Maria Galega, oferecendo seus préstimos e deitou cartas para Zé Chagas, quando abriu a sessão: “Estou vendo ouro na sua vida”. E o gaiato respondeu na bucha: “Só se for ‘ourina’, Maria”.
Quando o dono da casa de caixões de defuntos quis dá uma saidinha, pediu a Zé Chagas que tomasse conta que “ele chegaria já”. E Chagas, que atuava defronte com a casa de jogo “O Bafo da Onça”, prontificou-se em atender ao amigo. Eis que chegam pai e filho para comprar um caixão. Vão perguntando o preço e Zé Chagas dizendo. De repente o viúvo indaga se ele faz um preço menor no ataúde. Zé Chagas não mede consequência e liberta sua verve gaiata: “Só faço menor preço se o amigo levar dois”.
E o primo “véi” só não levou uma surra das maiores por causa da turma do deixa disso.
Deve estar brincando por aí, na outra dimensão.