NÉ DE ZECA Clerisvaldo B. Chagas, 10 de janeiro de 2013. Crônica Nº 944 Do romance inédito, “Deuses de Mandacaru”. O ruído ...

NÉ DE ZECA



NÉ DE ZECA
Clerisvaldo B. Chagas, 10 de janeiro de 2013.
Crônica Nº 944
Do romance inédito, “Deuses de Mandacaru”.

O ruído dos animais comendo, entoava como suave música nos ouvidos do ex-coiteiro. Um passarinho que pipilava, os mugidos dos garrotes, o balanço das árvores, davam a impressão e a certeza a Né de Zeca, que as cadeias não foram feitas para ele. “Cadeia não era lugar de homem, como muita gente dizia. Cadeia foi feita para bicho. Nem todo bicho. Quem quisesse fosse lá para vê como era bom! Ele ficara com a arca, está certo, mas não era tão mau assim. Bem, pelo menos pensava que não o era. O homem não é ninguém para julgar ninguém. São José que o protegesse. Não seria por falta de fé que iria morrer em uma emboscada feita por aí. Sofrera muito na cadeia, mas São José no instante dera um jeito de tirá-lo de lá. Havia ficado sem mulher, iria perder a propriedade por abandono, mas o baú estava ali pertinho. São José é muito bom... A gente é quem não presta mesmo. Fora até mal-agradecido com os seus salvadores, mas o que fazer? Metade do mundo querendo passar-lhe o bacamarte nos peitos para tomar o baú!... Tem nada não. Deus dotou o homem de pernas compridas foi para o sujeito correr mesmo. Eita noite que não quer chegar...”
O Sol declinou no pano azul do céu. Escondeu-se longe, na serrania entre mandacarus e facheiros vigilantes. Seus raios moribundos atravessaram os braços finos dos cactos esguios. Projetaram sombras deformadas na tarde fastidiosa. Pequenos tufos de poeira erguiam-se do chão espalhando-se no capinzal rasteiro. Caprinos procuravam abrigos juntando-se em rebanho, com medo dos felinos devoradores. Nos locais pedregosos, as serpentes esperavam as trevas para caçadas sinistras e repugnantes. Os ouricuris farfalhavam interpretando todo o langor da Natureza vespertina.
Né de Zeca estava no ponto de viajar. Comida cortada dentro de um saco, roupa, armas, carro de boi azeitado e lenha no veículo. O carro aguardava partida com a frente escorada num fueiro mal feito. O buraco onde estivera à arca fora disfarçado, escondida as ferramentas. No momento o fazendeiro afastava os bois para o encaixe no veículo. Enfiou a chave, ajustou o nó de couro cru e bateu no traseiro de um boi para juntá-lo ao cabeçalho. Pegou a vara de ferrão e com ela fez apoio, colocando a manzorra num fueiro e um pé na palmatória. Subiu. Botou um saco de estopa em cima da carga e acomodou-se. Olhou em torno como despedida. Depois bateu de leve a vara de ferrão na canga e disse com tristeza à junta obediente:
— Bora.
O carro começou a rodar. Tudo demonstrava que a viagem de Né de Zeca seria tranquila. Como vinha do mato, o fazendeiro quis passar pelo terreiro da casa para prosseguir viagem. Ali parou o carro e desceu para, pela última vez, entrar onde vivera tantos e tantos anos.
Já o Sol havia sido engolido pela Terra quando o ex-coiteiro pegou na porta e ouviu uma voz firme atrás de si:
— Teje preso, Né!



O TREM Clerisvaldo B. Chagas, 9 de janeiro de 2013. Crônica Nº 943 Imagem (Wikipédia). Vamos hoje resgatando parte da crôni...

O TREM



O TREM
Clerisvaldo B. Chagas, 9 de janeiro de 2013.
Crônica Nº 943

Imagem (Wikipédia).
Vamos hoje resgatando parte da crônica do escritor santanense Oscar Silva, refletindo sobre o trem. (Fruta de Palma – 1990).
“Os camponeses do Brasil imaginam o trem de ferro ‘como um monstro imenso e aterrador, lançando fogo pelas narinas, impaciente de partir numa velocidade diante da qual o mais ágil cavalo se transforma numa tartaruga, soltando, de quando em vez, um tão terrível apito que basta, ele só, para arrepiar os cabelos do homem mais corajoso. É como a personificação das antigas lendas do boi-tatá, o imaginário senhor das florestas virgens’.”
“Fechei o livro e fiquei ruminando as palavras do escritor. Os camponeses imaginam o trem uma coisa espantosa, mas pensam nele e comentam-lhe a existência. Os meninos da minha geração, garotos santanenses do meu tempo pensavam no trem e procuravam imaginar como ele seria. Era bem possível que aquela grande velocidade que nos falavam tivesse a rapidez do relâmpago. E dizer que Honorato Avelino corria mais do que o trem! Que Honorato fazia a viagem de ida e volta ao Juazeiro, 200 léguas a pé, em dois dias, disso nós tínhamos quase certeza; mas, correr mais do que o trem, era muito duvidoso. O trem, quando partia, devia ser assim com a bala que deixa a boca de fuzil... Houve mesmo tempo em que um sanfoneiro, para ser bom, teria que saber tocar “A Partida do Trem”, e a variação dos sons do teclado fazia-nos o pensamento voar como a polca a regiões totalmente desconhecidas. Como seria mesmo o trem?...”
“(...) Toda a gente em Santana conhecia Caipira e todos gostavam de vê-lo apitar como o trem. Assíduo frequentador da venda do Sinhô Morais, ora encostado ao balcão, ora sentado em um caixão de querosene, ali o encontrávamos a pedir a quem chegasse:
─ Patrão, me dê doistões pra tomar pinga.
─ Ah, Caipira, só se você apitar como o trem!
Caipira enchia o tórax de vento, batia com os cotovelos no paletó, bufava na boca à maneira de resfolgar da locomotiva, corria a passos miudinhos calçada em fora e, quando voltava, vinha apitando com toda a força dos pulmões: Piit! Piit! Piripipipipipipipiit!”
Era o famigerado TREM.


O ALGODÃO DE ZÉ VIEIRA Clerisvaldo B. Chagas, 8 de janeiro de 2013. Crônica Nº 942 Algodão. (Wilkipédia). Lá no povoado Pe...

O ALGODÃO DE ZÉ VIEIRA



O ALGODÃO DE ZÉ VIEIRA
Clerisvaldo B. Chagas, 8 de janeiro de 2013.
Crônica Nº 942

Algodão. (Wilkipédia).
Lá no povoado Pedrão, o marido da minha tia Delídia mandava absoluto. Terras, gado, bodega, casa de farinha, exportador de cereais, algodão e mamona, Seu Manoel Anastácio, tinha casa boa e era quem hospedava os párocos da, então, vila de Olho d’Água das Flores ou da sede, Santana do Ipanema. Dizem que muito viajado, era uma das poucas pessoas da região que possuía rádio e usava relógio de pulso e ainda tinha autoridade de subdelegado. Contíguo à bodega, estava o depósito de algodão que, em época de safra ficava o monte pelas telhas. Entre os seus empregados, estava o roceiro Zé Vieira. Calça remendada, cigarro de palha, olhos miúdos, sorriso ingênuo nos lábios, Vieira era muito mais devagar de que paciente mesmo. Cada saco enorme de estopa era pendurado por cordas na linha de madeira do telhado, tendo uma roda de rígida borracha na boca. O saco ia sendo preenchido com o capulho e ficando suspenso pelas cordas, quando Zé Viera entrava pela boca de borracha e ficava pilando o algodão com os pés. Alguém ia entregando o produto e ele pilando, pilando e ficando cada vez mais alto. O ambiente recendia ao aroma particular do algodão e emitia apenas os rashes-rashes abafados dos pés de Zé Vieira pilando o Gossypium herbaceum. O homem só deixava a estopa, quando o produto estava bastante pilado, ocasião em que era costurada à boca do saco e conduzido à balança manual.
Vamos vivendo em nosso estado uma situação em que os funcionários públicos recebem seus minguados salários, onze dias depois dos trinta trabalhados. Médicos e professores continuam sob pressão da falta de perspectiva na vida profissional, manietados pela Justiça rápida contra movimentos grevistas. Alagoas assim vai virando uma Síria de desenganos para os funcionários públicos que têm as cordas vocais sob os alicates do Executivo e do Judicário. O vice-governador nem manda nem desmanda, procurando agradar a chefia usineira de botas afiadas. Nem plano de cargos para os que salvam vidas, nem para os que educam os filhos da terra. Precatórios para os pequenos, já morreu o burro e o dono do burro, quando o assunto está escondido na casa dos horrores, nunca mais botou a cabeça de fora.
Coitado de Alagoas, espremido, machucado, pilado com os pés, muito mais do que O ALGODÃO DE ZÉ VIEIRA.