quinta-feira, 24 de março de 2011

MEIA PORTA

MEIA PORTA
(Clerisvaldo B. Chagas, 25 de março de 2011)

       O presidente dos Estados Unidos fez o seu giro pela América Latina, pontilhando apenas três países. O motivo resumido em três, não se sabe. Nem perguntando a ele próprio, o presidente responderia. E se respondesse, é óbvio que não falaria a verdade. E se falasse a verdade iria ofender quase o hemisfério todo. A repercussão, entretanto, da sua visita foi apática, quase inexistente. Os jornais do mundo inteiro preferiram a quentura do norte africano e a tragédia japonesa. Mas o mutismo da repercussão pode ter sido gerado na particular ação gelada, rotineira e sem vida de Barack. O que outrora causaria sensação, dessa vez conquistou apenas indiferença e sono. Os países da América do Sul, bem como os da América Central, calaram como se fosse uma combinação antecipada. Todos parecem cansados do império. Como a imprensa é a parte mais sensível dos grandes acontecimentos, a sua ausência após a visita do homem, pareceu refletir o pouco interesse no assunto. Foi por isso que os acontecimentos da Líbia e do Japão foram marcados em cima o tempo todo. Obama deve ter chegado de volta aos Estados Unidos, arrasado com a indiferença latina pela sua presença. Ele não é culpado sozinho. Os freios do congresso às suas ideias e a tradição arrogante americana, rareiam as caças nas pradarias do planeta. O presidente deve ter chorado com seus botões pela indiferença do Sul a sua visita, consequentemente a seu país. Foi levantar a popularidade e voltou pior. Ao chegar a Casa Branca, encontrou a porta fechada. Ficou preso por fora. A porta falou simbolicamente sobre o giro que acabava de fazer.
       Atolado até o pescoço no Iraque e no Afeganistão, os Estados Unidos não conseguem fazer brilhar a estrela do presidente que eles mesmos elegeram. É, porém, muito cedo para dizer se Obama está no lugar certo no tempo errado. Todo o plano de Barack no passeio latino voltou-se contra. Tanto é que, para aliviar às pressões antiamericanas em todos os lugares, entregou o comando a outros, nos ataques a Líbia. Não quis se desgastar mais ainda, muito embora possa ter alegado outras razões. Procurar notícia de Obama nos jornais ficou mais difícil.
       Enquanto isso, sigamos outros movimentos que estão ajudando a mudança global. Afinal, não se sabe tudo. Existem por aí tais bastidores, que são bichos quase invisíveis e que somente andam com o focinho nos ouvidos alheios. Longe dos bichos uma coisa é coisa; se estão os bichos, coisas não são coisas. Para os chamados agora “gestores”, nem tudo é conveniente que o povo saiba. Meu amiguinho, esse negócio de política é complicado até em casa, quanto mais no exterior. Veja o Obama, compadre. Triste que só urubu no inverno. Ao chegar ao Salão Oval da Casa Branca e encontrar a porta fechada, deve ter associado, como nós, à entrada da América Latina com apenas MEIA PORTA.


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COLHER DE ENGENHO

COLHER DE ENGENHO
(Clerisvaldo B. Chagas, 24 de março de 2011).

       Enquanto meu pai ensinava-me a ciência da vida, minha mãe preocupava-se com Educação e Cultura. Entre as suas lições, entrava o básico das etiquetas, tão apreciadas pelas sociedades grã-finas. Normalista criada na capital, vocacionada para o Magistério, Helena Braga destrinchava para nós como se comportar a mesa. Vivendo ainda numa cidade sofrida do interior ─ Santana do Ipanema ─ uma criança entre oito ou dez anos não tinha muitas oportunidades de usar as boas maneiras ministradas por Helena. Vivíamos ainda numa cidade de ruas empoeiradas ou lamacentas onde o progresso era sempre o último a chegar. Naquela época tínhamos férias no mês de julho além do prolongamento de final de ano: dezembro, janeiro e fevereiro. Só retornávamos às aulas no mês de março. As escolas verdadeiramente ensinavam, mesmo com menos tempo em relação à atualidade e com os parcos recursos existentes. Com a chegada das férias, eu me deslocava ao povoado Pedrão (pedra grande) pertencente à vila de Olho d’Água das Flores. Numa jornada de quatro léguas, o garoto viajava, ou em carro de boi com a tia Delídia ou em garupa de cavalo com Manoel Anastácio, a quem chamávamos tio.
       O Pedrão era tudo o que eu queria. Típico povoado nordestino onde a vida passava devagar, mas não faltavam diversões para o menino curioso que recolhia sem saber material para seus futuros romances. Com o abastado casal dirigente do Pedrão, eu ia vivendo uma espécie de casa-grande e senzala, engajado pleno nos dois mundos do povoado. A Igreja, a lagoa, os pomares, o cemitério, a casa de farinha, a bodega... Tudo representava a vida simples do campo, palco de inúmeros episódios que formavam o todo.
       Manoel Anastácio era um homem moreno, alto e magro conhecedor do mundo, liderança local. Certa feita, tomávamos o café da manhã quando recebi uma irônica, comparativa e inexplicável lição. Notando os meus modos à mesa, o meu tio observou que eu havia mexido o café com açúcar e experimentado o preto líquido com a colherzinha. Disse-me, então: “Na Zona da Mata, nos engenhos, eles usam colherinhas com um buraquinho no centro”. Naturalmente, pela idade, não dava para perceber a crítica. Pensei apenas porque aqueles tolos iriam comprar colheres normais para furar e mexer café. Depois de adulto fui pensar no assunto e não cheguei à conclusão nenhuma. É melhor queimar os beiços com café quente para mostrar educação ou experimentar logo com a colherinha?
       A vida da gente é uma sucessão de erros e acertos. Muitos problemas enormes, às vezes exigem soluções simples. Se minha mãe nunca me ensinou o uso da colher furada, nunca também nos exigiu queimar os beiços. Se o meu tio fosse vivo eu lhe iria cobrar o ensinamento incompreensível da crítica sem sentido. Espero que o leitor possa decifrar a lição que pula da mesa para os salões refinados das elites. Eu mesmo nada entendi da filosofia tapuia do meu tio. Mas o que é isso, comadre! COLHER DE ENGENHO.

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