COLHER DE ENGENHO
(Clerisvaldo B. Chagas, 24 de março de 2011).
Enquanto meu pai ensinava-me a ciência da vida, minha mãe preocupava-se com Educação e Cultura. Entre as suas lições, entrava o básico das etiquetas, tão apreciadas pelas sociedades grã-finas. Normalista criada na capital, vocacionada para o Magistério, Helena Braga destrinchava para nós como se comportar a mesa. Vivendo ainda numa cidade sofrida do interior ─ Santana do Ipanema ─ uma criança entre oito ou dez anos não tinha muitas oportunidades de usar as boas maneiras ministradas por Helena. Vivíamos ainda numa cidade de ruas empoeiradas ou lamacentas onde o progresso era sempre o último a chegar. Naquela época tínhamos férias no mês de julho além do prolongamento de final de ano: dezembro, janeiro e fevereiro. Só retornávamos às aulas no mês de março. As escolas verdadeiramente ensinavam, mesmo com menos tempo em relação à atualidade e com os parcos recursos existentes. Com a chegada das férias, eu me deslocava ao povoado Pedrão (pedra grande) pertencente à vila de Olho d’Água das Flores. Numa jornada de quatro léguas, o garoto viajava, ou em carro de boi com a tia Delídia ou em garupa de cavalo com Manoel Anastácio, a quem chamávamos tio.
O Pedrão era tudo o que eu queria. Típico povoado nordestino onde a vida passava devagar, mas não faltavam diversões para o menino curioso que recolhia sem saber material para seus futuros romances. Com o abastado casal dirigente do Pedrão, eu ia vivendo uma espécie de casa-grande e senzala, engajado pleno nos dois mundos do povoado. A Igreja, a lagoa, os pomares, o cemitério, a casa de farinha, a bodega... Tudo representava a vida simples do campo, palco de inúmeros episódios que formavam o todo.
Manoel Anastácio era um homem moreno, alto e magro conhecedor do mundo, liderança local. Certa feita, tomávamos o café da manhã quando recebi uma irônica, comparativa e inexplicável lição. Notando os meus modos à mesa, o meu tio observou que eu havia mexido o café com açúcar e experimentado o preto líquido com a colherzinha. Disse-me, então: “Na Zona da Mata, nos engenhos, eles usam colherinhas com um buraquinho no centro”. Naturalmente, pela idade, não dava para perceber a crítica. Pensei apenas porque aqueles tolos iriam comprar colheres normais para furar e mexer café. Depois de adulto fui pensar no assunto e não cheguei à conclusão nenhuma. É melhor queimar os beiços com café quente para mostrar educação ou experimentar logo com a colherinha?
A vida da gente é uma sucessão de erros e acertos. Muitos problemas enormes, às vezes exigem soluções simples. Se minha mãe nunca me ensinou o uso da colher furada, nunca também nos exigiu queimar os beiços. Se o meu tio fosse vivo eu lhe iria cobrar o ensinamento incompreensível da crítica sem sentido. Espero que o leitor possa decifrar a lição que pula da mesa para os salões refinados das elites. Eu mesmo nada entendi da filosofia tapuia do meu tio. Mas o que é isso, comadre! COLHER DE ENGENHO.
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