segunda-feira, 11 de novembro de 2013

DOIS ÍCONES E UM AFANO



DOIS ÍCONES E UM AFANO
Clerisvaldo B. Chagas, 12 de novembro de 2013
Crônica Nº 1084

Fonte: (Revista: Língua Portuguesa).
Encoberto até o pescoço no mar da Geografia, percorrendo a biblioteca de uma antiga escola, quase caio de costas. Nunca havia ouvido falar naquele livro que ao retirá-lo da estante, alisei estupefato e carinhoso a sua capa. “Geografia da Fome”, mas que novidade seria aquela? Ao ler o livro o impacto foi grande, tanto pela profundidade do conteúdo quanto pela apresentação literária que gruda os olhos no papel. Depois, muitos anos depois, o nome “Josué de Castro”, o autor, foi pontilhando aqui, acolá, timidamente, para hoje mostrar ao mundo inteiro que sua obra é feita de ouro em pó e resiste bravamente ao tempo.
Na época da minha descoberta, tive vontade de gritar para todos sobre o livro. Dentro da minha escola, falei da grandiosidade da obra de Josué.
Atualmente várias pessoas bebem dessa fonte, a exemplo de Susana Souto, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Alagoas, UFAL. Podemos apreciar uma síntese da ilustre pesquisadora, na revista “Língua Portuguesa”, pág. 34, editada em outubro deste ano, quando ela diz:
“Saber e sabor partilham o mesmo étimo. No entanto, nem sempre vêm associados em textos científicos. Há uma visão disseminada, segundo a qual esse tipo de texto não precisa ter qualidades estéticas. Mas nem todos os cientistas têm essa visão. Muitos dedicam tanto tempo à coleta de dados e às reflexões sobre os resultados de suas pesquisas, quanto à elaboração dos seus textos.
Este é o caso de Josué de Castro (1908-1973), médico e pesquisador pernambucano, autor que se notabilizou ao publicar Geografia da Fome (1946), trabalho traduzido para mais de 25 idiomas. Josué assumiu vários cargos públicos, atuou como representante do Brasil na ONU e teve seu nome duas vezes incluído na lista do Prêmio Nobel da Paz.
Infelizmente seu nome figurou também em outra lista: a dos que perderam seus direitos após o golpe militar de 1964. Josué foi então condenado ao exílio, do qual não conseguiu retornar, após inúmeras tentativas. Cada vez mais abatido pela saudade do Brasil, faleceu em 1973. Seu enterro ocorreu no cemitério São João Batista no Rio de Janeiro e foi noticiado em pequenas notas pelos jornais da época, sem foto (proibida pelos censores da ditadura). Hoje, quando o Brasil discute seu sistema de saúde pública, passados mais de 30 anos de sua morte, lemos Geografia da Fome e ainda ficamos comovidos com a elaboração sofisticada de quadros terríveis da desigualdade social, compostos com palavras pensadas, e mais, sentidas, em sua plasticidade, em sua sonoridade”. E encerra Susana, a pesquisadora da UFAL: “Ouvimos ainda o grito de Chico Science, em sua canção-homenagem a esse pesquisador atento às contradições do país: ‘Ó, Josué, eu nunca vi tamanha desgraça/quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça’.
Ah! Mais um reconhecimento a esse ícone Josué de Castro, o que me faz lembrar outro admirável mestre da Geografia, Aziz Ab’Saber. Retornando ao segundo parágrafo, logo o livro Geografia da Fome, criou pernas e, quando à biblioteca retornei, nem rastro Josué deixou. DOIS ÍCONES E UM AFANO.



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