O CÃO DO POÇO (Clerisvaldo B. Chagas. 27.10.2009) Entre as pessoas bastante conhecidas de Santana do Ipanema, estava o “Maneca”. Maneca era...

O CÃO DO POÇO

O CÃO DO POÇO
(Clerisvaldo B. Chagas. 27.10.2009)

Entre as pessoas bastante conhecidas de Santana do Ipanema, estava o “Maneca”. Maneca era vizinho da loja de meu pai, no lado esquerdo. Depois, desceu e ficou sendo o vizinho da direita, quase defronte ao museu atual. Maneca era um comerciante que nem ria nem era sério demais. Vivia para o seu negócio, um café que também servia de bar. Raramente vi àquele homem fora do estabelecimento ou a caminho de casa. Inúmeras personalidades ficavam horas conversando diante da loja de meu pai, menos o Maneca que vivia exclusivamente para o seu trabalho. Ali era ponto de inúmeras pessoas da freguesia, lugar certo para um café ou uma cerveja em relação aos que visitavam a cidade. Certa vez eu vi o Maneca chegar à porta da loja de meu pai e parabenizá-lo pela aprovação de primeira do meu irmão mais em velho no vestibular de Medicina. Daí em diante Maneca subiu muito em meu conceito. Dizem que de vez em quando, o comerciante bebia alguma coisa. Bem, nunca notei nada nessas transições, mas dizem que ele agia diferente. Maneca já foi motivo de crônicas de outras pessoas. Vão dois exemplos inéditos: um sujeito foi comprar cigarros e ele disse que não tinha. O homem insistiu apontando os maços do produto na prateleira. Maneca fez ouvidos de mercador: “Eu já disse que não tem”. Quando um dono de farmácia sentou à mesa e pediu um bolo, Maneca trouxe o bolo inteiro, colocou-o no prato do professor Alberto Agra e retirou-se calado. Surpreso e indagando o que era aquilo, Alberto teve como rápida resposta: “o bolo que você pediu”.
Recentemente tinha havido alguns casos de assombrações na cidade vizinha de Poço das Trincheiras. Muita gente saía de Santana e da redondeza para ir testemunhar os fenômenos. Depois logo botaram o apelido das coisas de “Cão do Poço”. Lá mais na frente, Maneca arranjou um empregado para servir cafezinhos. Branco, alto, boca grande, cabelo agastado, o servente originário do Poço das Trincheiras, logo recebeu o apelido de “Cão do Poço”. Um pouco bronco, mas gente boa, servidor e bem humorado. “Cão do Poço” passou a dormir no lugar do trabalho. Sempre que o patrão fechava o café, as chaves ficavam com o empregado. Mas como foi dito, quando Maneca resolvia beber um drinque mudava alguma coisa.
O Prefeito Ulisses Silva governava Santana pela segunda vez, na primeira metade da década de 60. Uma reforma completa estava sendo feita no centro da cidade, inclusive a substituição do calçamento bruto por paralelepípedos. Defronte ao salão paroquial foi colocada uma montanha de pedras pela caçamba da prefeitura. E naquela noite, ao chegar à hora de fechar, Maneca fez ao contrário do de sempre; mandou “Cão do Poço” sair do estabelecimento, baixou a porta, passou a chave e foi saindo calado. Como o “Cão” não havia entendido, perguntou pelas chaves: “Não dou”. “E onde eu vou dormir Seu Maneca?” E o comerciante ─ economizando palavras ─ apontou o indicador para o monte de pedras, ao lado da Matriz de Senhora Santa Ana e sentenciou a cama de “Cão do Poço”: “Ali”. Coitado do “Cão”... Nem do inferno ele era. Amanheceu dormindo nas mesas de jogo do vizinho Luís Lira. Maneca, homem de bem e muito querido em Santana, também sabia indicar confortáveis camas para O CÃO DO POÇO.

O COTIDIANO DA REALIDADE (Clerisvaldo B. Chagas. 26. 10. 2009) Vamos acabando de chegar do Shopping por volta das 22 horas. A vizinha está ...

O COTIDIANO DA REALIDADE

O COTIDIANO DA REALIDADE
(Clerisvaldo B. Chagas. 26. 10. 2009)

Vamos acabando de chegar do Shopping por volta das 22 horas. A vizinha está na calçada em grande expectativa. Parece excitada com os últimos acontecimentos de rotina da rua. Diz simplesmente ao passarmos: “Estou aguardando a conclusão dos fatos”. Perguntamos surpresos que fatos são esses. E a gordinha explica que acabaram de matar um ladrão ali perto da praça. Mas não é possível? Esse Maceió está quase igual ao Rio de Janeiro. Já ontem mataram dois no bairro da Levada. Mas a vizinha insiste em contar a história novidade. Um ladrão havia roubado uma bicicleta, os populares não quiseram aguardar a polícia e fizeram justiça com as próprias mãos. O gatuno está sem vida lá na praça para quem quiser ver. Mas a gordinha ainda diz que chegou a segunda notícia: O roubo não teria sido de uma bicicleta, mas sim de apenas uma torneira. Para que o ladrão queria uma torneira? Ora, um objeto assim é muito útil em casa. Mas talvez tenha sido para vender e comprar drogas com o dinheiro. Hoje se rouba as coisas mais incríveis como sombrinhas, tênis, litros, latas velhas... Tudo serve para adquirir algumas pedras ou uma trouxinha de maconha. Antes de deixarmos à vizinha, ela (nem sei como) tem novas informações: a polícia acaba de chegar ao local. Nós vamos embora e, a gordinha ─ ligada à crônica policial e à rotina do bairro ─ continua à porta farejando a continuação das coisas.
E os rotineiros casos de Maceió continuam enchendo as páginas dos jornais, carbonos dos dias anteriores. É a mulher da garganta possante que passa gritando “feijão verde!” É o aguadeiro com a propaganda da água ou o insistente carrinho de DVDs piratas. Lá na grota mataram mais um. Terrível batida na Fernandes Lima. Nova greve estoura em Alagoas... E assim, sob o forte calor dos trópicos, a capital alagoana vai vivendo entre as obras do comércio e o trânsito doido que engarrafa sempre. A praça grande, outrora tão bonita, agora é dos sem-terras e de outros sem. Vez em quando uma notícia alvissareira que já nasce desconfiada. E aos domingos, praias poluídas, movimento intenso na orla distante e um comércio vazio, esquisito e assustador de tão deserto. Não, ninguém estar falando de pessimismo. Apenas sobre a rotina de uma capital com inúmeros aspectos de interior.
E’ a crônica que conta a história diária de um povo, principalmente no seu aspecto mais simples. Pinturas das ruas; quadros das praças; a “verdade” dos doutores; as “mentiras” das notícias. Muitas vezes ela é insípida como em várias ocasiões falta o sal a própria existência. E se em todas as páginas, sempre aparecem fatos novos, talvez sejam iguais aos que a vizinha tanto aguarda para quebrar O COTIDIANO DA REALIDADE.



GENTE BOA(CONTO) (Clerisvaldo B. Chagas. 22.10.2009) Para a “Dama do Teatro Santanense” (Albertina Agra) e Nilza Marques. Passa...

GENTE BOA (CONTO)

GENTE BOA(CONTO)

(Clerisvaldo B. Chagas. 22.10.2009)

Para a “Dama do Teatro Santanense” (Albertina Agra) e Nilza Marques.


Passava da meia-noite quando a rodoviária esvaziou. Era o último ônibus das trevas e eu não podia perder. Nunca ficamos à vontade em terras estranhas, pois sempre algo diferente parece nos rondar. Para quem gosta, um café; para quem fuma, cigarro. Uma saudade no peito, um amor virtual. Raras pernas passantes pelos corredores longos. Um guarda que namora; um vigia sonolento; estrato de névoa lenta que abraça à rua, que beija a madrugada, que se chega ao de fora. Cochila na porta a cadela branca. E um homem feio do chapéu redondo aperta os passos.


Meu andar parece torto como personagem da “Noite” de Érico Veríssimo. Quero fumar, mas nem fumo. Relanceio a noite preguiçosa, com seus pontos brancos, navegando na branca névoa. Já vou procurando alívio no mictório adormecido. Ali tem um homem, é o dono da roleta que nem abre a boca. Minha perna bate e vence a resistência da roleta solta. Por que está ali uma roleta solta? O baque violento no chão rodoviário parece um grande escândalo que ressoa longe, ecoa além dos corredores vazios. Aguardo a chuva de grosserias, de palavrões, de indecências que certamente serão recrutados. E olho para trás, naquela terra estranha. Pareço levar nos lábios um pedido retinto e amaciado das mais aconchegantes desculpas. A criatura - o dono da roleta que nem era dono - nem meu semblante olha. Retorce o braço e colhe a mão no quadril, quando cita educadamente como um ser divino: “Nem ligue!” Não vi mulher, não vi homem, não vi gay. Vi uma pessoa que me deixou muito feliz, aliviando uma tensão, para mim enorme, em terras alheias. Fui impressionado ao mictório. Na volta agradeci à gentileza, saí nos passos tortos da novela. Percorri sozinho o corredor solitário. A pessoa ficou lá, cumprindo o seu dever àquela hora com todo bom humor e educação que Deus lhe deu. Deixei à luz, fui ver à noite de perto. Furar a escuridão, a névoa, o destino... Aguardando máquina enorme de carregar gente. E chegou uma quentura muito agradável. A porta abriu e eu embarquei impressionado. Quando as duas estrelas de baixo vararam o breu de Garanhuns, tive a certeza de que se o Eterno semeou coisas ruins, também deixou no mundo muita GENTE BOA.