BURROS DAS PESTANAS BRANCAS Clerisvaldo B. Chagas, 23 de outubro de 2014 Crônica Nº 1.288 Nos bons tempos, Seu Manezinho Chagas...

BURROS DAS PESTANAS BRANCAS



BURROS DAS PESTANAS BRANCAS
Clerisvaldo B. Chagas, 23 de outubro de 2014
Crônica Nº 1.288

Nos bons tempos, Seu Manezinho Chagas comprava aquilo que achava interessante. Foi assim que adquiriu um animal estranho apontado por uns como jumento e, por outros, como burro. Para quem não sabe burro é burro, jumento é jumento. Explicando, jumento é filho do jumento com jumenta; burro é filho de jumento com égua ou de cavalo com jumenta. Burro é estéril e resistente às longas caminhadas.
Ainda no período em que o Sertão alagoano era abastecido de água através do jegue em quatro ancoretas, com água de cacimba dos rios secos, estava ali o quadrúpede negociado.
Animal branco, roliço, cauda longa, pestana branca, não havia ninguém que não parasse para vê-lo. “Hem hem ─ falava o passante ─ Como é bonitinho! É um jumento ou um burro? Não havia quem dirimisse a dúvida.
O danado representava um feixe de nervos. Até o vento fazia-o saltar de lado. Para carregar cangalha e ancoretas era capaz de quebrar os recipientes com os sustos vindos do nada. Um passarinho, uma folha seca, uma besteira, era o suficiente para o pulo de gato. Colocado na sela, repentinamente derrubava o cavaleiro ao simples balançar de um galho na estrada.
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O mundo sertanejo é repleto de ditos, ditados, provérbios, máximas ou que se dê o nome que quiser. Um deles diz que “é melhor um cachorro amigo que um amigo cachorro”. Outro fala que “quem faz de cachorro gente, fica com o rabo na mão”. Um terceiro, semelhante, reza: “Quem dá rabo a nambu ficar suru”.
Não foi uma vez só que fiquei com o rabo na mão. Creio que o amigo leitor, também. Você tem um amigo, pensa que é seu amigo seguro e de repente: bummmm! Você ficou suru. A vida é pródiga em nos apresentar amigos cachorros. Amigo mesmo é o que nossos pais já falavam: pai e mãe. Por mais que você se prepare, companheiro, dificilmente não provará esse fel marcante em sua vida.
E para lhe derrubar de repente, o velho mundo redondo está quadrado de burros das pestanas brancas.



O TESTE DE SEU IZAÍAS Clerisvaldo B. Chagas, 22 de outubro de 2014 Crônica Nº 1.287 Conheci muito bem Seu Izaías. Comerciante...

O TESTE DE SEU IZAÍAS



O TESTE DE SEU IZAÍAS
Clerisvaldo B. Chagas, 22 de outubro de 2014
Crônica Nº 1.287

Conheci muito bem Seu Izaías. Comerciante com armarinho e padaria no Largo da Feira, pertinho da loja de tecidos de meu pai. Alto, corpulento e arrogante o que Izaías gostava mesmo era dar esporros. Casado com a professora Hilda, muito educada ─ amiga e colega da minha mãe Helena Braga ─ morava o homem na Avenida Coronel Lucena. Muitas pequenas histórias se contavam sobre Seu Izaías, algumas publicadas outras não.
Sendo também pequeno fazendeiro, Izaías criava dois jumentos pega, enormes. Em uma parte da manhã os dois animais eram levados para a calçada da padaria, onde os marroques (pães duros, sobra do dia anterior) eram colocados num balaio de cipó e servidos aos jumentos, como ração. Era interessante o roc-roc, ruído dos dentes asininos nos pães duros.  
Izaías havia sido delegado civil. Imaginem! Mas, entre tantas historietas interessantes e hilárias do comerciante, contou-nos um rapaz que na época era balconista do armarinho-padaria que certa feita chegara por ali um caixeiro-viajante. E como todo vendedor, abriu o seu mostruário e pôs a deitar conhecimento de ciências, tentando impressionar o cliente e demais pessoas. Nesse momento o proprietário estava sem paciência. E sem paciência Izaías era um verdadeiro perigo verbal, pronto a explodir. Mas o caixeiro-viajante continua seu blá-blá-blá, direto e sem freios na máquina da verborreia. Nesse instante, para e faz a pergunta fatal ao seu cliente: “O senhor sabe Seu Izaías, que o homem é um animal elétrico?” E o comerciante, rapidamente pegou a deixa há muito aguardada: “Só acredito se você meter uma lâmpada no seu c... e ela acender!”.
Foi o bastante para que o caixeiro deixasse rapidamente o armarinho-padaria e abandonasse a praça de Santana do Ipanema.
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Nessas campanhas políticas quando o candidato sobe aos palanques, não passa de caixeiro-viajante ilusionista. A demagogia provoca náuseas, vontade de vômito fácil e sensação de impunidade moral. “Vocês acreditam em mim?” indaga o safado. E o que vem à cabeça como resposta, sem dúvida alguma, é o teste imoral de Seu Izaías.


RIACHO, RUAS, LITERATURA Clerisvaldo B. Chagas, 21 de outubro de 2014 Crônica Nº 1.286 Manezinho Chagas e a Rua Antonio Tavare...

RIACHO, RUAS, LITERATURA



RIACHO, RUAS, LITERATURA
Clerisvaldo B. Chagas, 21 de outubro de 2014
Crônica Nº 1.286

Manezinho Chagas e a Rua Antonio Tavares. Fotos (Clerisvaldo).
E vêm as lembranças todas de uma vez. Vejo o riacho Salgadinho, seco e sumido, no Bairro Floresta. Revejo o mesmo Salgadinho, forte, pujante, absoluto lambendo os quintais, interrompendo a estrada da serra Aguda, levando o rolo d’água valente para o seu patrão, rio Ipanema.
E contemplo na tela grande da mente a minha Rua Antônio Tavares, a primeira de Santana. Seu Otávio magro, um homem enorme, com uma faca enorme, deslizando a arma nas mantas de carne de sol. Diante de si o cocho enorme da salgadeira. A faca de Seu Otávio magro parecia cortar manteiga de tão afiada. Seu Otávio vendia carne, Seu Antônio vendia doces, Seu José Camilo vendia farinha, Seu Manezinho Chagas vendia tecidos, Dona Zifina vendia candeeiros, Seu Carrito vendia a bodega... É... Seu Carrito vendia a bodega, diz a mente repisando lembranças.
Surge Seu Otávio Marchante com a peixeira no coldre. Torcedor do time da cidade. Torcedor número um, correndo às beiradas do Estádio Arnon de Melo com seus gritos robustos: “Bola rasteira, menino! Aí é Joãozinho”.
Seu Joaquim, o soldado que não prendia ninguém. Alfredo Forte fazendo calçados, Pedro Porqueiro negociando suínos e Antônio Marceneiro, sem camisa, arrastando a plana. Seu Tancredo tem caminhão, Seu Guilherme é merceeiro, Seu Né fumando cigarro constantemente, cuba terras. Soldado Leôncio fala grosso, Júlio Pisunha faz colchão de junco. Firmino Carreiro, Manezinho Quiliu com as casas cheias de moças. Eu hoje, espiritualmente falando com Zefinha de Seu Né, doce e amiga como sempre. Severino vende tecidos, Dona Alice chama pra “armoçar”, Dona Ester lê cordel para nós.
Os jornais me entediam, as redes sociais ficam nojentas com propagandas abjetas, não quero mais escrever... Mas a brisa sopra a memória e sopra e sopra e me arrasta para o teclado. E vejo Chico Assis namorando, professora Adercina lendo jornal, Ambrosina engomando, Elias batendo sola...
Sei não... Por que tenho que escrever isso nessa Literatura minação que às vezes seca como o Salgadinho, às vezes bota cheias enormes como esse mesmo riacho.