NÊGO BEBO AÍ
(Clerisvaldo B. Chagas, 16 de dezembro de 2010)
Vamos valorizando as nuances entre o moderno e a poeira da antiga Rua Antonio Tavares, cidade de Santana do Ipanema, representante legítima do Sertão e Alto Sertão alagoano. Muitos dias sem novidades na primeira rua do município. Naquele movimento rotineiro ocupa seu espaço a bodega do Seu Antonio. Na outra esquina do beco, o fabrico de carne de sol de Otávio Argolo, vulgo Otávio Magro. O Beco da Salgadeira vai vivendo com os atrativos da entrada e o depósito de lixo do seu corredor ladeiroso. Elo entre as Ruas Antonio Tavares e Professor Enéas. E nos fundos da casa comprida, Seu Antonio (nem sei mesmo se o nome era Antonio) a fabriqueta de vinagre. Antonio e esposa, casal distinto e trabalhador que vendia um pouco de tudo. Parelha com dois filhos, homens feitos, um em Santana e outro no Rio de Janeiro que davam bastante trabalho. Severino e Zezé preocupavam os pais laboriosos. E nós, crianças, íamos trocar “destões” por bolachão (bolacha grande e fofa, deliciosa com manteiga). Os grandes frascos de vidros cheios de doces variados ornavam o balcão rígido de madeira. A fábrica Neusa abastecia esses frascos cobiçados pela meninada. Dos fundos da nossa casa, eu lançava os olhares perscrutadores para a paisagem distante, lá do outro lado do rio. Da varanda, às vezes, via passar em direção à cidade, a Van com o nome enorme “Neusa”, escrito na lateral. Era o aviso garboso de que as bodegas e mercearias iriam encher aqueles frascos apetitosos. Na época, faziam sucesso as marchinhas de carnaval e, entre elas, a que dizia assim:
“Foi numa casca
De banana que pisei, pisei
Escorreguei
Quase caí
Mas a turma lá de trás, gritou:
Chi! Tem nêgo bebo aí...
Tem nêgo bebo aí!”
A chegada da Neusa marcava a hora de procurar doces novos na bodega de Seu Antonio. Certa vez ali entrei quando a senhora, distraída, cantarolava a marchinha enquanto espanava a prateleira. Passei a vista nos vidros repletos de doces. Um deles mostrava uns bonequinhos coloridos e transparentes. Indaquei o nome do doce. A mulher não se embaraçou. Como estava com a música na cabeça e na boca, deu de ombros e respondeu: “Nêgo bebo aí!” Então, também dei de ombros e comprei quinhentos reis de “nêgo bebo aí”, batizado pela esposa do bodegueiro.
Agora, nesse tempo eletrônico de viver, ainda encontro bolachões fora da bodega de Seu Antonio. Menores, é verdade, mas os mesmos bolachões, quadrados e fofos. Não sei, entretanto, se a fábrica Neusa ainda existe. Mas, da poeira da Rua Antonio Tavares direto para os salões administrativos públicos, a velha pátria amada continua sem lixeira. Sempre, sempre, grita a turma lá de trás: “Chi! Tem nêgo bebo aí! Tem NÊGO BEBO AÍ!”.
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