domingo, 18 de julho de 2010

A TAMPA DA GARRAFA

A TAMPA DA GARRAFA
(Clerisvaldo B. Chagas. 19.7.2010)
Para “Tonho Cupim", Fábio Campos, Magda Wanderley, Valter Filho, Malta, Primo Véi, Valões, Capiá e Remi Bastos.
Como segunda escola do estado da futura Rede Cenecista, em Santana do Ipanema funcionou o Ginásio Santana. Pelo menos por duas décadas, o Estabelecimento teve como mestres pessoas de outras áreas de trabalho. Esses profissionais atuavam como colaboradores sociais para a juventude estudiosa e nada recebiam em troca. A remuneração era apenas o reconhecimento costumeiro de final de ano. Assim, desfilaram pelo casarão: bancários, médicos, padres, juízes, contabilistas, comerciantes... Sempre cheios de boa vontade. Participei de uma turma, cujo professor de Ciências, era o médico Jório Wanderley. O doutor sempre foi educado, sereno e respeitoso com seus alunos. A sua limpidez didática influenciou a minha futura carreira no Magistério, bem como as sínteses explicativas do mestre Alberto Nepomuceno Agra. Apesar de tudo, os alunos não conseguiam ficar à vontade durante as aulas do médico Jório. Todos temiam uma gentil e irônica observação ou um educadíssimo “retire-se, por obséquio”. As suas explicações eram de uma clareza formidável e, as aulas, quarenta minutos de suspense. Certa feita, doutor Jório Wanderley desenhou uma garrafa no quadro-negro e indagou a todos para que servia a tampa da garrafa. Numa classe composta de cinquenta e nove alunos, caiu uma bomba de silêncio, ocasião em que vinte segundos transformaram-se em vinte horas. Ninguém, absolutamente ninguém, teve a coragem e a ousadia de responder. Finalmente desenganado, o doutor mesmo esclareceu: “Serve para tampar a garrafa”. O alívio foi geral, todos estavam certos no pensamento, mesmo assim continuou o silêncio. Final de ano, apenas cinco aprovados. Entre eles, eu, que apreciava a matéria.
O mundo pode ter mudado com seu progresso e tecnologias. O Homem, entretanto, continua com os seus medos, inseguranças, receios de passos perdidos. Os caminhos dos sonhos recebem névoas que às vezes não se desfazem nunca. O concreto dos grandes edifícios, as filas intermináveis de automóveis, as ruas desertas das madrugadas, fabricam momentos de pavor quando se pensa na vida. Move-se a humanidade num porvir enigmático, amargo e doce, colorido ou cinza como o cimento das edificações. O ignorante quer saber, o sábio duvida, o fraco dissipa-se. Cérebros de robôs, pernas de robôs, multidões de robôs caminham, se cruzam, se amam... Agitam-se. E dos contos de Breno Accioly, dos romances de Clerisvaldo B. Chagas, personagens viram realidade da ficção que já foi real. Todos, ficção e realidade, buscando respostas, querendo saber o que há por trás da neblina. Da vida. Um dia viramos Pilatos interrogando alhures, indecisos, tontos, vacilantes: “Verdade! O que é a verdade?” Mas não queremos ouvir a resposta, tal o próprio que não quis ouvi-la. E vamos seguindo mudos diante da complexidade do mundo e do risco de viver. Sabemos tudo e nada sabemos. Um alto-falante invisível interroga. Curvamos a cerviz. Calamos ─ como os alunos do doutor Jório Wanderley ─ com receio de não sabermos para que serve a TAMPA DA GARRAFA.

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