quarta-feira, 5 de outubro de 2011

CORTANDO A VIDA

CORTANDO A VIDA
Clerisvaldo B. Chagas, 6 de outubro de 2011.

           Mexendo em uma revista velha para recortes da escola, eis que fui surpreendido por um belo artigo que falava sobre bolas de futebol e sua evolução*. Dos cem anos de futebol, o autor do artigo, dizia sobre o segundo tipo de bola que apareceu justamente a bola da minha infância, com a qual jogava o Ipanema. Confeccionar uma bola de futebol não é nem era coisa fácil. Em Santana do Ipanema, Alagoas, não me lembro de outros que faziam bola de futebol, mas fui o único escritor santanense a falar da figura do Gerson Sapateiro. Moreno claro, alto, diziam os mais velhos, que Gerson havia sido atleta do Ipanema. Casado com uma filha de Regina Cambão, senhora muita solicitada para vasculhar casas. Na sua pobreza de sapateiro, Gerson engordara. Morava perto da minha casa, à Rua Antonio Tavares e era vizinho do conhecido João Engraxate, cujo filho, Cícero de Mariquinha era o grande cantor da época. Mas Gerson também cantava, possuía excelente voz, porém, só cantava quando queria. Naquele tempo andava um pouco aborrecido com a vida, por isso diziam que ele era “mascarado” (mascarado é aquele que só canta quando quer) assim como o caçador Mário Nambu, outro excelente cantor. Não adiantava adular que eles se irritavam.
            Gerson fazia bolas encomendadas para o Ipanema. Um trabalho artesanal, como ainda hoje, de muita perícia e paciência. Essa segunda bola da evolução do futebol, era de couro e já possuía câmara de borracha. A primeira bola era com câmara de bexiga de boi. Uma vez ou outra perdida, feliz daquele que conseguia ouvir da calçada, melodias na voz do sapateiro cantor.
            Hoje as bolas continuam evoluindo. São revestidas de poliuretano, material sintético mais resistente e impermeável. Nunca mudou, todavia, o modo artesanal de costurar e montar os pedaços da bola. Antes continha trinta e dois gomos, agora a bola nova tem 12 gomos. O maior produtor de bola do mundo seria o Paquistão. Apenas vinte fabricantes no globo tinham o selo da FIFA e, no Brasil apenas uma única marca possuía o privilégio do selo. As bolas eram encomendadas aos presídios, cujos prisioneiros tinham remuneração por bola confeccionada. Como curiosidade, quando o Brasil ganhou a primeira Copa do Mundo, as bolas eram do segundo tipo que se usava no time do Ipanema, confeccionada pelo Gerson, isto é, de couro com câmara de ar de borracha.
          E eu fico pensando como é que uma danada e simples revista velha é capaz de mexer com os sentimentos da gente. De fazer aflorar lembranças que espezinham o coração e pressionam os olhos. Ah... Saudade... Ali está o Gerson, ex-atleta do Ipanema, cantor quando quer cantar, “mascarado” com razão. Amargurado, corpo grande na tenda pequena, sola na mão, faca amolada, cortando couro, CORTANDO A VIDA.

·         CARDOSO, Maurício. Terror de goleiro. Veja, 30 (44): 84-85, Nov.1997.



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